QUANDO A criancinha no colo da mãe disse que o rei estava nu, ninguém pensou em promover um ato público em defesa da roupa inexistente e do rei pelado.
Discretamente, os áulicos da comitiva real devem ter feito uma barreirinha, protegendo a nudez do monarca, que logo voltou ao palácio e se colocou em trajes convencionais.
Pulo do conto do Hans Christian Andersen diretamente para a sessão de cinema aqui no Rio onde um filme de Glauber Rocha estava sendo exibido pela milésima vez.
Uma voz se levantou da platéia, era de Madureira, não o subúrbio, mas o humorista homônimo, que declarou que o filme (não o Glauber) era uma merda.
Estupor entre as cultas gentes! Ranger de dentes!
Como podiam ter deixado um cara daqueles, que não pertencia ao povo eleito, penetrar no sagrado pátio, no templo da arte do Terceiro Mundo que salvará a espécie humana das tiranias e do uso desenfreado da Coca-Cola e dos filmes do Rambo?
Lembro uma sessão no velho Polytheama, onde se exibia um filme de Kubrick, "2001 - Uma Odisséia no Espaço". Silêncio sepulcral na sala, dividida na platéia propriamente dita e no balcão, ambos lotados e perplexos.
Nem mesmo a música de Richard Strauss quebrava o espanto de todos, antes, o acentuava, tornando-o monumental, epifania de um futuro que começaria naquele instante.
Uma voz vinda lá de cima, sarça ardente queimando no Monte Sinai instalado no largo do Machado, desceu como um pássaro de bronze avisando a todos:
- Estou entendendo tudo!
Ninguém se mexeu. Havia um eleito que estava entendendo aquilo tudo. Todos estavam salvos.
Voltando ao filme de Glauber, o desabafo de Madureira produziu o mesmo efeito.
Ninguém discordou, pelo contrário, todos ficaram mais convencidos ainda da grandeza do filme.
Eu próprio, que não estava lá para presenciar momento tão transcendental, folguei que afinal alguém tentasse colocar as coisas no lugar.
Glauber é um gênio, não houve outro entre nós. O diabo é que ele não encontrou um veículo apropriado, caótico como ele, universal como ele, para expressar a sua genialidade.
Teve de usar o material que estava à sua disposição, um material fantástico, sim, mas impotente para movimentar as turbinas submersas que iluminariam o mundo que ele pretendia criar.
Deu tiros em várias direções, partindo sempre do eixo imóvel de suas raízes e de seu tempo -tempo que ele criava com um grão de loucura que não fazia sentido, mas fazia bonito, um bonito redundante, formado por lugares comuns gritados por seus personagens ("O cinema do Terceiro Mundo venceu o capitalismo ocidental na Guerra do Vietnã!") ou brandidos por flâmulas coloridas na ponta de fuzis descarregados -todos os filmes dele têm esse balé de bandeiras, estandartes que rodopiam enquanto uma voz em off, solene e ameaçadora, garante que o homem vencerá o dragão.
Não há humor nem ironia em seus filmes, as mensagens são as mesmas, extensas, com um sentido que só ele entende: o fraco é o forte e o forte é um filho da puta.
Faltou a Glauber ter inventado uma arte que não fosse o cinema, que transcendesse o cinema.
Poesia, romance, teatro, ópera, embolada sertaneja, todas as expressões populares ou eruditas de sua visão de mundo, tudo o que ele tentou na busca de uma linguagem própria, não passou de um genial delírio no qual ele acreditava, como se tivesse a um passo da descoberta definitiva e vital.
Seria o caso de perguntar: o que o cinema representava para Glauber Rocha?
Na minha opinião, o cinema para ele era um duende infantil, que habitava salas escuras, a cada sessão se materializava, depois retornava à dimensão gasosa de uma coisa inexistente.
Dou um exemplo que parece não ter nada com Glauber. Toda a vez que passava em frente ao cinema América, na praça Saens Peña, Adolpho Bloch pisava de mansinho e falava baixo.
Ali ele assistira em criança à "O Corcunda de Notre Dame" diversas vezes, pensava que o corcunda morava ali, se não estivesse trabalhando na tela, tocando o seu sino de bronze, ele estaria ali nos seus domínios de duende, protegido pela escuridão do salão deserto, até que um contra-regra diabólico o despertasse e o obrigasse a ser o monstro iluminado que metia medo nas criancinhas. Uma forma de ver e sentir o cinema como a verdade.
Discretamente, os áulicos da comitiva real devem ter feito uma barreirinha, protegendo a nudez do monarca, que logo voltou ao palácio e se colocou em trajes convencionais.
Pulo do conto do Hans Christian Andersen diretamente para a sessão de cinema aqui no Rio onde um filme de Glauber Rocha estava sendo exibido pela milésima vez.
Uma voz se levantou da platéia, era de Madureira, não o subúrbio, mas o humorista homônimo, que declarou que o filme (não o Glauber) era uma merda.
Estupor entre as cultas gentes! Ranger de dentes!
Como podiam ter deixado um cara daqueles, que não pertencia ao povo eleito, penetrar no sagrado pátio, no templo da arte do Terceiro Mundo que salvará a espécie humana das tiranias e do uso desenfreado da Coca-Cola e dos filmes do Rambo?
Lembro uma sessão no velho Polytheama, onde se exibia um filme de Kubrick, "2001 - Uma Odisséia no Espaço". Silêncio sepulcral na sala, dividida na platéia propriamente dita e no balcão, ambos lotados e perplexos.
Nem mesmo a música de Richard Strauss quebrava o espanto de todos, antes, o acentuava, tornando-o monumental, epifania de um futuro que começaria naquele instante.
Uma voz vinda lá de cima, sarça ardente queimando no Monte Sinai instalado no largo do Machado, desceu como um pássaro de bronze avisando a todos:
- Estou entendendo tudo!
Ninguém se mexeu. Havia um eleito que estava entendendo aquilo tudo. Todos estavam salvos.
Voltando ao filme de Glauber, o desabafo de Madureira produziu o mesmo efeito.
Ninguém discordou, pelo contrário, todos ficaram mais convencidos ainda da grandeza do filme.
Eu próprio, que não estava lá para presenciar momento tão transcendental, folguei que afinal alguém tentasse colocar as coisas no lugar.
Glauber é um gênio, não houve outro entre nós. O diabo é que ele não encontrou um veículo apropriado, caótico como ele, universal como ele, para expressar a sua genialidade.
Teve de usar o material que estava à sua disposição, um material fantástico, sim, mas impotente para movimentar as turbinas submersas que iluminariam o mundo que ele pretendia criar.
Deu tiros em várias direções, partindo sempre do eixo imóvel de suas raízes e de seu tempo -tempo que ele criava com um grão de loucura que não fazia sentido, mas fazia bonito, um bonito redundante, formado por lugares comuns gritados por seus personagens ("O cinema do Terceiro Mundo venceu o capitalismo ocidental na Guerra do Vietnã!") ou brandidos por flâmulas coloridas na ponta de fuzis descarregados -todos os filmes dele têm esse balé de bandeiras, estandartes que rodopiam enquanto uma voz em off, solene e ameaçadora, garante que o homem vencerá o dragão.
Não há humor nem ironia em seus filmes, as mensagens são as mesmas, extensas, com um sentido que só ele entende: o fraco é o forte e o forte é um filho da puta.
Faltou a Glauber ter inventado uma arte que não fosse o cinema, que transcendesse o cinema.
Poesia, romance, teatro, ópera, embolada sertaneja, todas as expressões populares ou eruditas de sua visão de mundo, tudo o que ele tentou na busca de uma linguagem própria, não passou de um genial delírio no qual ele acreditava, como se tivesse a um passo da descoberta definitiva e vital.
Seria o caso de perguntar: o que o cinema representava para Glauber Rocha?
Na minha opinião, o cinema para ele era um duende infantil, que habitava salas escuras, a cada sessão se materializava, depois retornava à dimensão gasosa de uma coisa inexistente.
Dou um exemplo que parece não ter nada com Glauber. Toda a vez que passava em frente ao cinema América, na praça Saens Peña, Adolpho Bloch pisava de mansinho e falava baixo.
Ali ele assistira em criança à "O Corcunda de Notre Dame" diversas vezes, pensava que o corcunda morava ali, se não estivesse trabalhando na tela, tocando o seu sino de bronze, ele estaria ali nos seus domínios de duende, protegido pela escuridão do salão deserto, até que um contra-regra diabólico o despertasse e o obrigasse a ser o monstro iluminado que metia medo nas criancinhas. Uma forma de ver e sentir o cinema como a verdade.
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