quarta-feira, 19 de março de 2008

Repressão e preconceito - FERREIRA GULLAR

VAMOS FALAR a verdade: a sociedade em que vivemos é pura repressão. Já foi pior, claro, muito pior. Houve tempo em que as mulheres não podiam mostrar nem o pé, quanto mais as coxas ou a barriguinha, como mostram hoje. Naquela época, os homens apenas imaginavam como seria o corpo da mulher com quem iam se casar. Hoje, podem vê-lo inteiro, da barriga às nádegas, com exceção talvez do púbis. Por que a repressão? Por mero preconceito, pelo propósito moralista que tomou conta da sociedade.
Não nascemos nus? Por que então temos de andar cobertos de roupas, que nos escondem o corpo? Disse que hoje as mulheres mostram quase tudo, mas isso na praia, porque, fora de lá, escondem quase tudo. Claro, não como antigamente, quando tinham que se cobrir de saias e mais saias, blusas e corpetes.
E os homens? Esses, coitados, tendo que imitar os hábitos europeus, sufocavam dentro de roupas pesadas, paletós e coletes. O calor insuportável terminou por obrigá-los a aliviar a vestimenta, mas, até hoje, homem que se respeita usa paletó e gravata. Às vezes, alguns tiram a gravata, mas dificilmente tiram o paletó, a camisa, as calças; a cueca, então, nem pensar. Por que não podemos andar nus como os índios? Não nascemos nus? Nos países frios, no inverno, admito, não dá para abandonar as roupas, mas, nos trópicos, as roupas são a expressão dos preconceitos morais e da repressão religiosa. Os únicos que se aventuram a ficar nus em pêlo são os nudistas, mas apenas em certas praias, e não por culpa deles; por culpa, sim, da hipocrisia social que obrigaria a polícia a prendê-los. Por que não se pode entrar nu num banco, já que obscenidades maiores são lá praticadas com permissão da lei?
A verdade é que a repressão está presente em todos os momentos de nossa vida. E de tal modo introjetou-se em nós que, quase automaticamente, vamos impondo-a sobre cada pessoa, mal começa a entender as coisas. Não pode pôr a mão na boca, o dedo no nariz, juntar a chupeta do chão e chupá-la, trepar na cadeira de balanço, aproximar-se do fogão, brincar com faca e tesoura, chupar bola de gude. Não pode nada, nada! Além disso, tem de obedecer aos mais velhos -mesmo os que tenham mais de 30 anos-, aturar as gaiatices dos irmãos, apanhar sem revidar etc. Em seguida, vem a fase escolar, que nos obriga a soletrar, decorar, aprender a ler, a escrever, a contar, a dividir, a multiplicar. Ou seja, o sujeitinho que nasce livre é transformado em outra pessoa, metido numa camisa-de-força, engessado, robotizado. E se se rebela, paga caro; conforme seja, cortam-lhe a mesada; se insiste, termina internado ou preso, vira bandido. E depois reclamam que o cara virou bandido! Se ele gosta de birita, maconha, cocaína, crack ou ecstasy, é problema dele. Mas não, pai, mãe, polícia, a sociedade inteira se volta contra ele. E depois ainda se tem o desplante de afirmar que vivemos numa democracia. Como democracia, se o cara tem que se sujeitar às imposições sociais? Por quê? Se o cara cheira, fica doidão e sai assaltando os caretas, é problema dele. O assaltado que se vire. Eu gostaria de saber por que esse preconceito contra quem gosta de drogas. Não tem gente que gosta de alpinismo, de asa-delta, de mascar chiclete, comer chocolate, malhar na academia? E então? Cada um nasce com suas manias e preferências, que devem ser respeitadas pelos demais, do contrário não se pode falar que vivemos numa sociedade que respeita os direitos dos cidadãos.
A verdade é que não respeita. Nem o poderia, uma vez que quase nunca as normas sociais coincidem com as necessidades e desejos das pessoas. Por exemplo, se o cara tem preferências sexuais, que escapam ao que se chama de normalidade, está sujeito, conforme o caso, a condenações judiciais ou até linchamento por parte dos fanáticos defensores daquelas normas. Se o sujeito nasceu pedófilo, por que sua preferência sexual é considerada crime? Por que punir alguém que apenas obedece a impulsos inatos que lhe são impostos pela natureza?
Está tudo muito errado. Por razões que ignoro -mas que refuto liminarmente-, os homens escolheram reprimir seus desejos mais genuínos e seu modo espontâneo de vida em função de normas, disciplina, valores que, como observou Nietzsche, só favorecem os fracos e covardes. Só esses necessitam de leis repressoras para compensar a natural superioridade dos fortes.
Agora, se alguém me pergunta se permito que defequem em minha sala e não no vaso do banheiro, respondo que devem fazê-lo no vaso. E que dêem a descarga, certo?

5 comentários:

Anônimo disse...

As críticas que compus sobre o pavoroso artigo de Ferreira Gullar, de 24 de fevereiro, foram encaminhadas para o Mario Magalhães, então ombudsman da Folha.
O texto em inglês foi enviado para organizações internacionais também.

O texto de Gullar, no fecho, ainda se refere a "defecar em minha sala". A partir disso, chamei o artigo de artigo-ssshit - shit é mer... em inglês. E o sssh imita o som que fazemos quando pedimos silêncio, referência ao fato de a Folha ter "calado" todos os comentários sobre o artigo. (E ter, em seguida, obrigado Mario, o ombudsman, a não mais trocar e-mails com os leitores..., diante do que Mario, com toda a justeza, pediu as contas.
Vamos aos textos.



Sehor Ombudsman da Folha de S. Paulo,

Não sou poderosa no sentido de que posso escrever horrores, consigo publicá-los e, depois, decido não ter o "troco", a antítese publicada, e assim evito ver-me exposta às severas críticas, em alguns casos irretorquíveis.

Entretanto, sou poderosa no sentido de ter apreendido valores, de, sim, ter-me "transformado em outra coisa" (termos de Gullar no artigo-ssshit), coisa essa acima de tudo capaz de perceber o quanto se manipula a idéia de democracia ao sabor de hipocrisia.

Hipocrisia não é ter "duas caras". É não fazer valer valores universais de forma universal e, ainda assim, defender tais valores. Ou seja, a justiça depende do status, o respeito depende da renda, a liberdade de expressão, desses dois fatores e outros mais... Mas o discurso democrático está sempre no ar.

Sabe, não encontrei nenhuma linha comentando o ssshit de artigo. Caiu mal. O silêncio, em cima do artigo.

Envio-lhe o que elaborei tendo em vista o escrito de Gullar - que foi à escola e, transformado em "outra coisa" que nossa sociedade chamou de escritor, deu às costas, se não a "impulsos ditados pela natureza", à Beleza.

Não proclamaria que alguém "nasce pedófilo". Muito diferentemente, defenderia que nascemos com o instinto programado para o que é Belo. E que se perde com tanta freqüência.

Beleza. Eis uma boa "bússola", em meio à perdição. Moralidade é um constructo, uma elaboração de quem foi à escola por um bom tempo. Mas ser sensível à Beleza não requer escolaridade.

Um dos meus escritos, que ora envio, foi elaborado em inglês. Depois dele, vem outro em português, que traz idéias adicionais.

Saudações,
Amélia Regina Coelho
06 de março de 2008



[título] Shh!, the solution of a major newspaper for an unflushable essay on morality

Ferreira Gullar, a regular writer for Folha de S. Paulo, www. folha. com. br claimed, in his "Repressão e preconceito" [Repression and prejudice], published in that newspaper on Sunday, 24/02, p. E12*, that "everything is very wrong", while, very likely, the most severe problem can be traced back to the manners of companions of his, or simply guests, who would insist, "Why not defecating here, in your living room?"

Bad for you, if you read Gullar's article anywhere else but in the bathroom. Too bad.

As a remarkable contrast to the recent Steven Pinker's "Moral Instinct" (New York TImes, Jan 13, 2008), the translation of it still in my suitcase (Folha itself, Feb 10), Gullar's arguments are disturbingly revailing of a mind that completely failed to grasp any sense of morality. Indeed, in view of his article, it is easy to deny the existence of anything akin to a moral instinct. But something turns out to be even more astonishing: Mr. Gullar - and the newspaper - got away with that all. Not even a single line commenting on that article did the newspaper involved seem to have issued. Then, even the ever-so- present-around-here Roman Catholic Church has apparently remained indifferent before what is detailed below. (or does She have a voice in the paper's scrap room?)

Gullar, under the tag of 'repression' and 'prejudice', has written:

on pedophilia:
:
"If the individual was born a pedophile, why is his sexual preference considered a crime? Why punishing someome that simply obeys his innate impulses, that are imposed on the person by nature?" Well, yes, quite a redundant style, as it is. [emphasis is added]


on drug consumption:

"If [the guy] enjoys birita, marijuana, cocaine, crack or ecstasy, it is his business"...

The author implies that, later on, crime follows drug addiction just because of the repression the person had been a victim of since the very moment s/he became a drug user, repression which, as he sees it, challenges the claims we live under democracy:


"And then [they] complain the guy has grown into a criminal!"
"...[If the guy enjoys (drugs), it is his business.] Despite, father, mother, the police, the whole society rises against him. And on top there comes the daring allegation we live under democracy."


Next comes the writer's recipe of how to deal with such situation:

"If the guy smokes, gets crazy and goes round mugging the 'caretas' [slang for the well behaved, conventional people], it is his [the addict's] business. The mugged one is to help him/herself (let him/her virar-se)."


All Gullar's puzzle is over this:

"I would like to know the reason for such prejudice against whoever enjoys drugs. Aren't there those who enjoy climbing... eating chocolate...? So..."


on law:

Gullar places the name of Nietzsche attached to his next argument (below). I cannot help thinking that it is good for Nietzsche to be dead for, otherwise, he might be so appalled - adding to the shock his failing to make Folha publish his reply - he could resort to 'natural impulses'...

"Only the weak and coward need repressing laws to compensate for the natural superiority of the strong.".

So, clear as it is, Gullar's allegedly Nietzsche-friendly 'thesis' proposes that the ones that "obey nature" are the Naturally Strong, and are the very ones society condemns and calls them 'criminals', 'the mentally ill', and so forth. The 'caretas' are the weak... Indeed, the latter need the law to protect them against crime, but relying on legal systems would not make them weak... Or so I would think so far, and presumed most would also stick to that.

(Ah! Not a thesis at all, just a 'piece of art, of literature' that prevented any, any further comments? I am sorry, taking so 'strong' a point is not my cup of tea.)

Not a thesis, just 'art'? The 'sound' of it:

"It is all very wrong. Due to reasons I ignore but outright refute, men [literal translation, please read 'people' or, if you dare, 'humans'] have decided to repress their most genuine desires and their spontaneous way of life in favor of rules, discipline, values that, as Nietzsche put it, only benefit the weak and coward..."


So it seems that, by writing all those "deep" propositions, Gullar has convinced himself of his "strength", as he, we are left to realize, would be himself a pedophile and a drug addict or, as he prefers it, a natural, strong and wise obedient to nature impositions.

So 'strong' in fact he may feel he could eventually regret he is unable to reconcile his 'strength' to whatsoever trace of beauty in the shape of either words or ideas, as he reaches the conclusion to his text:

The ending:

"Now if someone asks me whether s/he is allowed to defecate in my living room, and not in the bathroom's toilet, I retort that they must do so in the toilet. And that they must flush, right?"

Has his astonishing essay been just flushed itself? And democracy - or whatever - just goes on?

I guess Folha has become fond of what I recognize most vividly as the 'Vatican way' - the cover-up, or "nothing has happened at all'. Such silence, by the way, strongly disagrees with the fuss around the article by the TV presenter Luciano Huck, issued just a year ago, and, especially, the antithesis to such article, where it is claimed Huck, recently mugged and deprived of his Rolex, had nothing to complain about since what happened was a "fair exchange" - his offender (not so, according to Gullar) had not taken Luck's life.

The most-acclaimed Brazilian movie, still on, "My name is not Johnny" has not been addressed by Gullar, but it could have been the very drive to, probably, the most disgusting apology to fake freedom ever. The movie was generally received among us as a "lesson"; in turn, this "Repression and prejudice" - and all the silence, so far, around it - might lead to another production capable of eternalizing a "Ferreira Gump". Meanwhile, I would suggest someone should try to welcome a whole new group of guests, ones who would not take asking dump questions as freedom.

Amélia Regina Coelho
March 03, 2008

-----------------------------------


Mais insights sobre a "democracia". Em português.


"Se o sujeito nasceu pedófilo, por que sua preferência sexual é considerada crime? Por que punir alguém que apenas obedece a impulsos inatos que lhe são impostos pela natureza"?

"Se o cara cheira, fica doidão e sai assaltando os caretas, é problema dele. O assaltado que se vire".

"E depois ainda se tem o desplante de afirmar que vivemos numa democracia".


O autor desses trechos ainda "traz" Nietzsche para o lado dele.

O de mais foi constatar que o jornal no qual o artigo que defende tais idéias foi publicado não ofereceu ao público - até onde eu pude averigüar - nenhuma linha com pensamentos que contestassem o artigo. E, claro, tal não ocorreu por falta de tais pensamentos.

Isso me fez lembrar de artigo também recente em The Economist, em que se lê:

"The quality of the argument, not the quality of the access to power is what matters."
(Fev 16, p 14) [A qualidade do argumento, não a qualidade de acesso ao poder, é o que importa.] E então, o jornalista também associa tal argumento à democracia.

Entre nós, restou patente a força da "qualidade do acesso ao poder". O artigo que contestava as alegações de Luciano Huck, após ser assaltado, era muito mais "suave". E foi amplamente "combatido".

Assim, sem uma dieta que resolva o excesso de hipocrisia - o que é ético está subordinado àquele acesso -, fica no ar rarefeito o sonho de um debate sobre concepções de democracia. O contraste entre as duas visões pode ser associado a outros fatores relevantes, como moralidade, etc.

Está feita a sugestão. Ainda mais porque o silêncio do jornal - só isso mesmo o conseguiria - conseguiu ser mais aviltante do que o próprio artigo.

Pena mesmo que não vigore de fato entre nós o enaltecido "mercado de idéias", mas "o se esconder" em abrigos de "privilégios" (do mesmo artigo de The Economist)

Sim, omiti até agora o autor daqueles trechos do início intencionalmente. Para deixar evidenciado o condicionamento geral de, antes de mais nada, ver quem escreveu. Todo o julgamento, então, não é em relação às idéias em si, mas é moldado em função dos laços de poder, status, etc que tal indíviduo usa para... se esconder quando convèm.

Bem, para usar uma das expressões do próprio autor, Ferreira Gullar, ele "é que se vire", para começar a experimentar a própria "democracia" que defende.

Estaria tudo "muito errado"? Talvez percebamos, deixando a hipocrisia de lado por alguns segundos, que ainda não somos hábeis em elaborar uma tese robusta sobre democracia, especialmente diante da visão de Gullar, para ele inquestionavelmente "democrática".


Amélia Regina Coelho
04 de março de 2008

Anônimo disse...

Olha, Ferreira Gullar é uma jóia rara e preciosa da nossa literatura mesmo. Sou fã genuína desse homem!

kindzu disse...

Esta crônica, certamente, é uma das melhores realizadas nas últimas décadas. O problema é a pequenez de certos cérebros alheios que não alcançam a devida compreensão. Talvez, eles achem realmente que o Gullar caga na sala de estar.

Wálysson Luan disse...

Gullar é um escritor que foi trazido pela cegonha.Nobre poeta!

Vejam meus textos : http://www.recantodasletras.com.br/autores/walyssonluan

Felipe disse...

A questão discutível,não querendo entrar no subjetivismo da religião,é que,querendo ou não,são as normas e regras morais necessárias à convivência social,e que estas em sua maioria existem por um motivo bem claro,salvo as excessões,que talvez hoje sejam muitas.Como diziam já alguns filósofos,o estado de natureza humano é mal,e além disso algumas coisas na vida precisamos passar,aprender a ler,escrever,andar,...enfim....se tendo tanta regra e norma e limites e valores estamos como estamos,fico pensando se as tais não existissem.