segunda-feira, 31 de março de 2008

Nossas mochilas - Wilson Jacob Filho

"Estou cansado o tempo todo. Sinto-me um velho." Ouço queixas como essa todos os dias, vindas de pessoas com menos de 40 ou mais de 80 anos. Excetuando-se as que raramente apresentam uma causa orgânica para justificar seus sintomas, como um órgão insuficiente ou uma condição anormal, as demais se baseiam na sua percepção de desânimo.
Não pretendo discutir os distúrbios de humor. Não há espaço para isso nem é este o local adequado. Mais oportuno será tentar entender o que se esconde por trás da assertiva inicial. Primeiramente, há que se criticar essa imprópria correlação entre a falta de vigor e a faixa etária, visto que grande parte dos idosos mostra-se disposta a realizar suas atividades praticamente todos os dias.
Mais importantes, porém, são as considerações que se seguem ao simples questionamento sobre as causas do desconforto. A maioria justifica o cansaço como decorrente dos inúmeros compromissos assumidos, que constituiriam "uma carga insuportável".
Fazem muitas coisas de que não gostam e raramente fazem algo que escolheram. À pergunta "qual atividade lhe dá prazer realizar?", segue-se um profundo silêncio, quebrado apenas pelas costumeiras desculpas, como "não tenho tempo para fazer o que gostaria" ou "se eu não fizer tudo isso, não há quem faça". Os cronicamente cansados são incapazes de juntar prazer ao seu cotidiano.
Em verdade, vejo-os arcados sob suas mochilas, sem atentar para o fato de que foram os responsáveis pelo que vai nelas. Quando iniciamos nossa jornada, independente de há quanto tempo, não levamos em conta quão longa ela poderia ser. É cada vez mais provável que seja mais duradoura do que a dos nossos pais e ainda mais longa que a dos nossos avós.
Isso requer atenção naquilo que colocaremos nas costas para carregar pela vida afora. É compreensível que nos preocupemos em guardar o que nos poderá ser útil, mas freqüentemente nos surpreendemos acumulando tudo o que passa diante dos nossos olhos.
Com isso, a mochila vai ficando mais pesada. Logicamente podemos esvaziá-la, mas, em geral, somos impedidos por temores decorrentes da nossa expectativa de "segurança plena". A melhor síntese dessa dificuldade se encontra nas divagações de Mr. Harry, em "O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde, que, tentando explicar as incoerências da sociedade ao jovem, considerou: "Quantas coisas não atiraríamos fora se não tivéssemos receio de que alguém as apanhasse e fizesse bom uso delas".
Que bobagem! O prazer não é competitivo. O fato de que os outros o têm não significa que ele não possa ser nosso. Concluindo, a mochila não precisa estar atulhada de artifícios que garantam a felicidade eterna. O que realmente faz a diferença, quando grande parte do trajeto já foi percorrida, é o vigor adquirido na jornada. Não apenas o vigor físico, que nos permita a independência, mas principalmente o vigor emocional de quem aprendeu muito no caminho e vai poder utilizar toda a experiência acumulada para superar as dificuldades que o tempo progressivamente nos impõe.
Quem chegar lá na frente com uma mochila leve, repleta de histórias para contar, certamente estará fazendo uma agradável viagem. "Estou cansado o tempo todo. Sinto-me um velho." Ouço queixas como essa todos os dias, vindas de pessoas com menos de 40 ou mais de 80 anos. Excetuando-se as que raramente apresentam uma causa orgânica para justificar seus sintomas, como um órgão insuficiente ou uma condição anormal, as demais se baseiam na sua percepção de desânimo.
Não pretendo discutir os distúrbios de humor. Não há espaço para isso nem é este o local adequado. Mais oportuno será tentar entender o que se esconde por trás da assertiva inicial. Primeiramente, há que se criticar essa imprópria correlação entre a falta de vigor e a faixa etária, visto que grande parte dos idosos mostra-se disposta a realizar suas atividades praticamente todos os dias.
Mais importantes, porém, são as considerações que se seguem ao simples questionamento sobre as causas do desconforto. A maioria justifica o cansaço como decorrente dos inúmeros compromissos assumidos, que constituiriam "uma carga insuportável".
Fazem muitas coisas de que não gostam e raramente fazem algo que escolheram. À pergunta "qual atividade lhe dá prazer realizar?", segue-se um profundo silêncio, quebrado apenas pelas costumeiras desculpas, como "não tenho tempo para fazer o que gostaria" ou "se eu não fizer tudo isso, não há quem faça". Os cronicamente cansados são incapazes de juntar prazer ao seu cotidiano.
Em verdade, vejo-os arcados sob suas mochilas, sem atentar para o fato de que foram os responsáveis pelo que vai nelas. Quando iniciamos nossa jornada, independente de há quanto tempo, não levamos em conta quão longa ela poderia ser. É cada vez mais provável que seja mais duradoura do que a dos nossos pais e ainda mais longa que a dos nossos avós.
Isso requer atenção naquilo que colocaremos nas costas para carregar pela vida afora. É compreensível que nos preocupemos em guardar o que nos poderá ser útil, mas freqüentemente nos surpreendemos acumulando tudo o que passa diante dos nossos olhos.
Com isso, a mochila vai ficando mais pesada. Logicamente podemos esvaziá-la, mas, em geral, somos impedidos por temores decorrentes da nossa expectativa de "segurança plena". A melhor síntese dessa dificuldade se encontra nas divagações de Mr. Harry, em "O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde, que, tentando explicar as incoerências da sociedade ao jovem, considerou: "Quantas coisas não atiraríamos fora se não tivéssemos receio de que alguém as apanhasse e fizesse bom uso delas".
Que bobagem! O prazer não é competitivo. O fato de que os outros o têm não significa que ele não possa ser nosso. Concluindo, a mochila não precisa estar atulhada de artifícios que garantam a felicidade eterna. O que realmente faz a diferença, quando grande parte do trajeto já foi percorrida, é o vigor adquirido na jornada. Não apenas o vigor físico, que nos permita a independência, mas principalmente o vigor emocional de quem aprendeu muito no caminho e vai poder utilizar toda a experiência acumulada para superar as dificuldades que o tempo progressivamente nos impõe.
Quem chegar lá na frente com uma mochila leve, repleta de histórias para contar, certamente estará fazendo uma agradável viagem.

sábado, 29 de março de 2008

Ambigüidade valoriza série sobre matador de matadores (Dexter) - CÁSSIO STARLING CARLOS

Vampiros, zumbis e "serial killers" são criaturas que nos metem menos medo do que se imagina. Seres de exceção, foram cultivados pelo cinema e depois pela TV como imagens distorcidas que refletem com mais fidelidade as fragilidades humanas do que as imitações perfeitas demais.

Dexter Morgan, protagonista do seriado cuja primeira temporada acaba de sair em DVD, é da estirpe dos assassinos seriais. Ao contrário de Hannibal Lecter, o mistério em "Dexter" não se elucida simplesmente com a exposição do lado escuro da alma e sua intriga não se resolve na mera oposição entre o mal e o bem.
Não por acaso a série se passa em Miami, cidade de cores quentes. Sob as sombras desse lugar ensolarado, Dexter transita sua aversão que desnuda tanta felicidade prêt-à-porter.
As ambigüidades da série começam na vida dupla do personagem central. Técnico de polícia, Dexter Morgan é também um assassino cuja especialidade é eliminar "serial killers".
O que interessa em "Dexter" não é a execução sumária disfarçada de justiça pelas próprias mãos. O ambiente policial é apenas um artifício ficcional no qual Dexter desfila seu ponto de vista em relação às fragilidades humanas.
Ao longo das histórias e das ações, o tempo todo se sobrepõe a voz do personagem, que comenta as obviedades dos comportamentos alheios.
Dadas suas características psicológicas e sua inclinação, Dexter é um solitário, alguém que enxerga e torna explícitas as armadilhas dos relacionamentos que o cercam. Sua acidez dirige-se, em particular, à família, foco das relações mentais, profissionais e criminais nesta primeira temporada.
Fator essencial para o sucesso da série é a presença de Michael C. Hall no papel central. Pelo excelente desempenho, o ator já foi indicado dois anos consecutivos ao Globo de Ouro.
Hall, conhecido como o David de "A Sete Palmos", traz a ironia do olhar, a aparência incomum e um tom sedutor de voz que afastam de seu Dexter qualquer rastro de monstruosidade, ao mesmo tempo em que o mergulha no poço sem fundo da humanidade.

A carne assassina - CARLOS HEITOR CONY

Não, não me refiro àquele inimigo da alma: a Carne, que, junto com o Diabo e o Mundo, renunciamos no momento em que somos batizados. O padre pergunta ao recém-nascido se ele renuncia ao Diabo, ao Mundo e à Carne. Como o batizando ainda não fala, fala o padrinho, que renuncia ao Diabo, ao Mundo e à Carne em nome da criança. O padrinho funciona como uma espécie de laranja.
A carne a que me refiro é a carne mesmo, de boi, porco, cabrito, cordeiro ou de qualquer outro animal que tenha carne vermelha, como a nossa. Descobriram que a carne faz mal, é uma carne assassina. Tal como o fumo, que tira 15 minutos de vida a cada cigarro que se fuma. Dentro desse cálculo, eu já deveria ter morrido há uns 40 anos, nem sei como continuo vivo. Mais para lá do que para cá, mas vivo.
Quando ministro da Saúde, o Zé Serra impôs aquelas figurinhas nos maços de cigarro para desestimular os fumantes. Homens cadavéricos morrendo em CTIs, em cadeiras de roda após enfartes violentos e até mesmo impotentes sexuais. Valeu tudo, todas as mazelas físicas e espirituais para mostrar os malefícios do fumo.
Mais dia, menos dia, com a carne vermelha acontecerá o mesmo. Ela não será proibida, porque haverá lobby de produtores, frigoríficos, açougues, churrascarias, restaurantes etc. Mas, a cada bife que recebermos em nossa mesa, virá alguma forma de advertência, uma imagem espetada em cima da carne, estampando um caixão de defunto, um cemitério, uma caveira com os ossos cruzados, como na bandeira dos piratas.
Confesso que ficarei deveras impressionado. (Nunca usei o "deveras", mas usado está.) Nem por isso deixarei de apreciar um bife suntuoso, uma picanha na brasa. Sem prazer, a vida não vale a pena, mesmo que a alma não seja pequena.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Desova em Ipanema - Zuenir Ventura

Em matéria de violência, já vi de tudo em Ipanema, ou achava que já tinha visto. Já encontrei bala perdida no terraço (felizmente estávamos viajando); ajudei a socorrer uma moça atingida por tiro num assalto na porta de casa; presenciei a banca de jornais em frente ser roubada pela oitava vez e o dono, Seu Vieira, ser baleado (Graças a Deus escapou, e passou o negócio); corri de arrastão e assisti numa manhã típica de Bagdá pessoas procurando se esconder ou se jogando no calçadão e na areia para se livrarem de um tiroteio. Mas o que aconteceu domingo de madrugada, isso foi inédito: um corpo no porta-malas de um carro na minha calçada, em uma das principais ruas do bairro, a 50 metros de uma viatura da PM ali estacionada. Ipanema, um dos mais altos IDHs da cidade, o mítico e hedonista cartão-postal do Rio, virar ponto de desova é demais. Sou do tempo em que essa prática sinistra já existia, mas os bandidos tinham mais respeito pelos mortos, eram menos acintosos, buscavam lugares distantes, ermos, não em frente ao prédio em que morou Vinicius de Morais, ele mesmo, o da Garota de Ipanema. Imagino como Tom Jobim recebeu a notícia de que aquele seu paraíso virou lugar de desova de corpos executados.
Por que achar que Ipanema, pelos seus belos olhos, estaria a salvo, posto que nenhum bairro está hoje imune à barbárie? Não é ingenuidade nem pretensão, é que a gente se choca mais com o que acontece no seu próprio quintal, na sua calçada. Por questão de minutos, eu quase assisti a mais essa cena, ao chegar um pouco antes de um jantar com amigos. Por isso, entendi o desabafo da leitora Ângela de Almeida. "Fomos vizinhos durante anos e até nos cumprimentávamos, mas nunca tivemos ocasião de conversar", disse ela num e-mail indignado em que explicava porque se mudara daqui. Queria sossego. "Havia me cansado das Bandas, Raves e da guerra constante entre nós, os contribuintes, e a desordem urbana". Mudou-se então para o Jardim Oceânico, onde achava ter encontrado "paz e passarinhos", e onde "não escutava mais o carnaval de rua". Até que abriu o jornal na segunda-feira e viu a notícia do corpo deixado na rua em que morou e de dois assassinatos na Avenida das Américas, "agora perto de mim".
Não adianta fugir. Houve uma época não muito distante em que se dizia: "na Barra não tem assalto". Segundo ela, a Barra e o Recreio agora saíram do mapa do governo e da polícia. "Todos corremos risco como em Gaza, como no Iraque, e dizem ainda que não estamos em guerra". Os filhos de Ângela lhe ensinaram que "viver com medo é viver pela metade". O problema é que "até eles agora estão assustados". Ela pergunta se o nosso destino é "viver só um pouquinho. Existe algum alento? Até quando nossos governantes vão fechar os olhos?". Com a resposta os governantes.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Nhoct, ploct, tchiiii, tloc-tsssss... - NINA HORTA

PARA MIM é fácil reconstruir o mundo pelos cheiros; já pelos sons, tenho mais dificuldade. Estou com saudade de Paraty e me dei ao luxo de ficar lembrando do acordar sossegado, sem despertador, uma vassoura raspando a terra dura e a pedra do terraço. Como fundo, a cachoeira que não pára nunca, o grito agudo de uns pássaros matutinos e uma cortina impenetrável de zumbido de insetos.
Mais longe, a lenha crepitando. Mais perto, o acendedor de gás, umas tampas de panela desmontando, o leite fervendo na panela.
A casa é de madeira, e os sons atravessam as frestas como as andorinhas das cornijas. Um cachorro se coça na porta da cozinha e sai guinchando com um grito abafado de alguém. As galinhas e os galos se lixam para os que dormem e põem a boca no mundo, anunciando o dia e o ovo.
A geladeira tem um zumbido peculiar, a torneira pinga e, de repente, o telefone toca, o coração dispara, deve ser o namorado da menina. É esse barulho de telefone que começa a nos preparar para os aviões que passam baixo e os helicópteros das férias.
O espremedor de laranja só pára de zoar quando acabam as laranjas e as mexericas. E então se escuta o capim sendo ceifado, uma ou outra conversa de cavalos e de burros, abelhas, grilos, cigarras.
A mesa de café está sendo posta, os passos descalços vão daqui para lá com as xícaras e os pires. Na televisão, em São Paulo, de vez em quando aparecem as vinhetas para surdos. Qualquer barulho difícil -e quase todos os barulhos são difíceis de traduzir- eles escrevem "borborinho" (sic). Complicado, para os surdos, carros que passam, pessoas que conversam, fuga do lugar do crime, seis mulheres conversando, é tudo "borborinho".
Fico pensando se o sítio também não tem sons muito destacáveis, difíceis de serem separados uns dos outros, é só um burburinho que não atrapalha ninguém. Dá para entender a água fervendo que explica o café, a máquina de moer os grãos ajudando na interpretação. Somos a audiência, os atores, os compositores nesta sinfonia doméstica doce e ritmada que não tem fim.
Os sons da natureza são harmoniosos, a chuva, quando cai num escândalo, dá medo, mas não é feia de se escutar, tem lá sua dignidade. Mas uma música a toda altura dentro de um barco no mar muito calmo e azul dá tontura. Quem sabe deveria haver uma faculdade que nos ensinasse a arquitetar os sons de uma cidade?
E ainda vai ter mão de pilão socando alho, faca afiando na pedra, feijão sendo catado, o processador virando as torradas em farinha de rosca, o bife chiando na frigideira, a casca do ovo se quebrando na tigela, o ovo sendo batido, a torneira pingando, a taioba batida com o facão e a tábua da salsa e cebolinha soando desequilibrada sobre a pia.
A banana vai fritar na manteiga para a torta, a porta do forno quebrada vai bater com força, se Deus quiser vai ter nhoct, ploct de jabuticaba, coco verde cortado para beber a água, o estalar da mordida da maçã, a melancia pesada rolando pelo chão, o som certeiro do facão eliminando a coroa do abacaxi, o tchiiii do frango grudando na panela, a massa do pão sovado, a prateada escamação do peixe, o estalo da ostra, um sugar humano de perninha de siri, outro de chupar caroço de manga, a salsicha boa que estala ao ser mordida, o tloc-tsssss da lata de Coca.
A banana não faz barulho, descasca baixinho, mas o doce se arrebenta em bolhas. É bom, assim. Tem algumas religiões que procuram o silêncio e será que conseguem?
Podíamos falar menos, evitar aquela gritaria histérica de propaganda tipo Casas Bahia, sorteio de barra de ouro, os oops de Big Brothers desassuntados, mas, não sei não, le silence éternel de ces espaces infinis m'éffraie.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Voltar - Luis Fernado Veríssimo

Segundo o folclore, era perigoso andar nas calçadas do distrito financeiro de Nova York durante o "crash" de 1929. Você corria o risco de ser achatado por um arruinado suicida, mesmo não tendo nada a ver com a crise.
Ainda não se teve notícia de gente pulando das janelas em Wall Street recentemente mas alguém, depois de notar que a participação do banco central americano no salvamento da financeira Bear Stearns era a maior intervenção do estado no mercado em 80 anos, comentou que nada na crise atual era tão significativo quanto esta frase.
Onde está 80 leia-se 79, o número de anos que nos separa da crise de 1929, cuja possível repetição assusta alguns e anima outros.
Voltar 79 anos não é apenas voltar aos corpos se espatifando na calçada, é voltar ao fim catastrófico de anos de "laissez-faire" e ganância desenfreada que precedeu o New Deal de Roosevelt e o intervencionismo keynesiano, que vieram para acabar com a farra e salvar o capitalismo de si mesmo.
O que assusta alguns e anima outros é imaginar que a catástrofe atual possa ser igual, e provoque corretivos parecidos. Que estamos na crise terminal de outro período de vale-tudo, véspera de uma reabilitação do estado regulador, e do bom senso.
De qualquer jeito, você e eu, que não somos financistas nem costumamos passear pelas calçadas de Wall Street, precisamos estar atentos nessa crise. Mesmo não tendo nada a ver com ela, cedo ou tarde alguma coisa cairá sobre nossas cabeças.

Quase perfeito
Agora essa. Poucos dias depois de ser empossado como governador de Nova York em substituição ao espiroqueta Spitzer, o vice-governador David Baterson reuniu a imprensa para anunciar que ele também teve relacionamentos sexuais fora de casa, inclusive com uma funcionária do governo estadual, e que a sua mulher sabia e compreendia - inclusive porque ela também dava suas voltas pela vizinhança.
O que lembra aquela história da busca do candidato perfeito para governar um estado americano.
Queriam alguém que merecesse, como nenhum outro, o adjetivo "impoluto". Se se chamasse Impoluto, melhor ainda. Não poderia haver um pingo, um grão de escândalo em sua vida, nada que sugerisse um desvio de conduta, um mau hábito, um mau pensamento sequer.
E a comissão encarregada de encontrar o candidato perfeito, depois de muito procurar, finalmente o encontrou. Um santo, segundo o presidente da comissão.
Atividade sexual? Nenhuma. Possibilidade de ter tido no passado, ou ter no futuro, alguma atividade sexual? Nenhuma. Castrado? Não, desinteressado.
Dará um bom governador?
- Bom - disse o presidente da comissão - aí vocês já estão querendo demais...

quinta-feira, 20 de março de 2008

Desgraça colorida - CARLOS HEITOR CONY

Faz tempo, dirigindo um carro em Montevidéu, cometi uma barbeiragem qualquer e me chamaram de "anormal". Nem dei bola. Não aprecio normas, não as tenho nem as cultivo. Mas outro dia, numa rua aqui do Rio, enfrentando um congestionamento, ultrapassei sem poder uma fila e me chamaram de "palhaço".
Não doeu como deveria, mas me senti como o criminoso que de repente é denunciado. Os palhaços sempre me impressionaram, não os achava engraçados, pelo contrário, tinha medo deles, de suas calvas, de suas vozes arranhadas. Em criança, quando me levavam ao circo, era um suplício, sonhava com eles, despertava coberto de suor. Eram desgraças coloridas, quanto mais coloridas mais desgraçadas.
Mais tarde, já adulto, encarnei num deles quando li o "King Lear", que convocou o bobo da corte para se distrair dos problemas que o afligiam, mas logo o mandou embora, dizendo: "És um bufão triste".
Taí. Todo bufão é mesmo triste, e os palhaços, tanto no picadeiro como fora dele, têm os olhos mais do que tristes por trás da máscara de alvaiade, a enorme boca pintada de vermelho disfarçando a vontade de chorar, chorar um pranto também enorme, que mistura todos os motivos que qualquer homem tem para chorar.
Em matéria de bufão, não fiquei no "Rei Lear". Um dos primeiros e raros sonetos que consegui decorar era uma chibatada não apenas em cima dos palhaços, mas de todos os profissionais de qualquer ofício. Autoria de um padre cearense que andava nas antologias de então. "Ontem viu-se-lhe em casa a esposa morta e a filhinha mais nova tão doente; hoje, o empresário vai bater-lhe à porta, que a platéia o reclama impaciente".
E o soneto termina: "Enquanto o lábio trêmulo gargalha, dentro do peito o coração soluça".

quarta-feira, 19 de março de 2008

Repressão e preconceito - FERREIRA GULLAR

VAMOS FALAR a verdade: a sociedade em que vivemos é pura repressão. Já foi pior, claro, muito pior. Houve tempo em que as mulheres não podiam mostrar nem o pé, quanto mais as coxas ou a barriguinha, como mostram hoje. Naquela época, os homens apenas imaginavam como seria o corpo da mulher com quem iam se casar. Hoje, podem vê-lo inteiro, da barriga às nádegas, com exceção talvez do púbis. Por que a repressão? Por mero preconceito, pelo propósito moralista que tomou conta da sociedade.
Não nascemos nus? Por que então temos de andar cobertos de roupas, que nos escondem o corpo? Disse que hoje as mulheres mostram quase tudo, mas isso na praia, porque, fora de lá, escondem quase tudo. Claro, não como antigamente, quando tinham que se cobrir de saias e mais saias, blusas e corpetes.
E os homens? Esses, coitados, tendo que imitar os hábitos europeus, sufocavam dentro de roupas pesadas, paletós e coletes. O calor insuportável terminou por obrigá-los a aliviar a vestimenta, mas, até hoje, homem que se respeita usa paletó e gravata. Às vezes, alguns tiram a gravata, mas dificilmente tiram o paletó, a camisa, as calças; a cueca, então, nem pensar. Por que não podemos andar nus como os índios? Não nascemos nus? Nos países frios, no inverno, admito, não dá para abandonar as roupas, mas, nos trópicos, as roupas são a expressão dos preconceitos morais e da repressão religiosa. Os únicos que se aventuram a ficar nus em pêlo são os nudistas, mas apenas em certas praias, e não por culpa deles; por culpa, sim, da hipocrisia social que obrigaria a polícia a prendê-los. Por que não se pode entrar nu num banco, já que obscenidades maiores são lá praticadas com permissão da lei?
A verdade é que a repressão está presente em todos os momentos de nossa vida. E de tal modo introjetou-se em nós que, quase automaticamente, vamos impondo-a sobre cada pessoa, mal começa a entender as coisas. Não pode pôr a mão na boca, o dedo no nariz, juntar a chupeta do chão e chupá-la, trepar na cadeira de balanço, aproximar-se do fogão, brincar com faca e tesoura, chupar bola de gude. Não pode nada, nada! Além disso, tem de obedecer aos mais velhos -mesmo os que tenham mais de 30 anos-, aturar as gaiatices dos irmãos, apanhar sem revidar etc. Em seguida, vem a fase escolar, que nos obriga a soletrar, decorar, aprender a ler, a escrever, a contar, a dividir, a multiplicar. Ou seja, o sujeitinho que nasce livre é transformado em outra pessoa, metido numa camisa-de-força, engessado, robotizado. E se se rebela, paga caro; conforme seja, cortam-lhe a mesada; se insiste, termina internado ou preso, vira bandido. E depois reclamam que o cara virou bandido! Se ele gosta de birita, maconha, cocaína, crack ou ecstasy, é problema dele. Mas não, pai, mãe, polícia, a sociedade inteira se volta contra ele. E depois ainda se tem o desplante de afirmar que vivemos numa democracia. Como democracia, se o cara tem que se sujeitar às imposições sociais? Por quê? Se o cara cheira, fica doidão e sai assaltando os caretas, é problema dele. O assaltado que se vire. Eu gostaria de saber por que esse preconceito contra quem gosta de drogas. Não tem gente que gosta de alpinismo, de asa-delta, de mascar chiclete, comer chocolate, malhar na academia? E então? Cada um nasce com suas manias e preferências, que devem ser respeitadas pelos demais, do contrário não se pode falar que vivemos numa sociedade que respeita os direitos dos cidadãos.
A verdade é que não respeita. Nem o poderia, uma vez que quase nunca as normas sociais coincidem com as necessidades e desejos das pessoas. Por exemplo, se o cara tem preferências sexuais, que escapam ao que se chama de normalidade, está sujeito, conforme o caso, a condenações judiciais ou até linchamento por parte dos fanáticos defensores daquelas normas. Se o sujeito nasceu pedófilo, por que sua preferência sexual é considerada crime? Por que punir alguém que apenas obedece a impulsos inatos que lhe são impostos pela natureza?
Está tudo muito errado. Por razões que ignoro -mas que refuto liminarmente-, os homens escolheram reprimir seus desejos mais genuínos e seu modo espontâneo de vida em função de normas, disciplina, valores que, como observou Nietzsche, só favorecem os fracos e covardes. Só esses necessitam de leis repressoras para compensar a natural superioridade dos fortes.
Agora, se alguém me pergunta se permito que defequem em minha sala e não no vaso do banheiro, respondo que devem fazê-lo no vaso. E que dêem a descarga, certo?

domingo, 16 de março de 2008

A grande festa da comunidade - Luis Fernando Veríssimo

Uma crise de crédito nos Estados Unidos estremece os mercados financeiros do mundo inteiro, a quantidade de utilitários queimando gasolina nas estradas americanas tem tudo a ver com o que você e eu pagamos por ela no posto da esquina e muita gente que nem se lembra em quem votou para vereador no seu país, e por que, sabe a razão de preferir o Barack ou a Hillary. Gostando ou não, vivemos todos em arrabaldes da América. Não surpreende que a principal festa destes subúrbios concêntricos seja a da entrega dos Oscars, quando a fábrica de imagens do nosso centro festeja justamente o sortilégio que nos domina: a sua riqueza, a sua potência, o seu fascínio. Enfim, tudo o que nos mantém presos na poltrona até depois da meia noite, convencidos que mesmo o tédio entre as partes boas do espetáculo nos diz respeito. Afinal, é uma festa comunitária.
O ritual dos Oscars, como todos os rituais, tem suas reincidências. Desta vez não houve muitos momentos "Meu Deus do céu!", quando alguém que julgávamos morto há anos aparece no palco e é aplaudidíssimo por ainda estar vivo. Poucos vexames, também. Todos os agradecimentos foram comedidos, talvez porque tantos premiados fossem visitantes estrangeiros na cidade e nenhum fosse o Roberto Benigni, o que explicaria o bom comportamento geral. Se bem que o Javier Bardem, se entendi bem, passou o tempo todo aos beijos com a própria mãe. O momento mais classudo, ou apenas mais inglês, da noite foi o do Daniel Day Lewis ajoelhando-se diante da única realeza presente na festa, a Helen Merrin, antes de receber o Oscar das suas mãos.
O apresentador Jon Steward falou do pouco tempo que os escritores tiveram, depois do fim da sua greve, para preparar o roteiro do espetáculo, mas a sua melhor piada pareceu feita na hora. Depois de notar que três atrizes presentes no teatro estavam grávidas, disse que talvez fosse cedo para fazer uma contagem final, já que a noite recém começara e Jack nicholson estava no recinto. Quem mais gostou da piada foi Nicholson, hoje o velho sátiro oficial de Hollywood. Steward apresenta um show na TV que costuma baixar o pau no Bush mas houve poucas referências políticas durante a noite. Na questão das guerras no Oriente Médio, deu empate técnico. Uma seqüência em que soldados americanos no Iraque anunciaram os vencedores numa categoria, depois a premiação de um documentário sobre um afegão torturado até a morte numa base americana. No seu agradecimento o diretor do documentário fez um breve protesto contra a tortura e mencionou Guantanamo e abu Graieb. não se falou mais no assunto.
Não deram um Oscar para a favorita sentimental de todo o mundo, Julie Cristie, mas não houve grandes injustiças nas premiações. Só acho que o prêmio para melhor fotografia deveria ser do "Onde os frescos não têm vez", ou que título deram ao filme em português. A paisagem, como em todos os filmes dos irmãos Coen, aquela dupla de farmacêuticos que, ninguém sabe como, faz cinema, tem uma participação essencial na história e no seu tom de aridez moral. Na verdade, a maior injustiça da noite foi não darem à paisagem do filme dos Coen o Oscar de melhor atriz coadjuvante.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Valentões de palácio - CLÓVIS ROSSI

Se você fosse chamado de canalha por alguém, se apressaria a apertar a mão do desafeto, no dia seguinte, todo sorrisos? Se você fosse acusado por alguém de financiar grupos delinqüentes, aceitaria, também todo sorrisos, o cumprimento de quem o acusou?

Se respondeu sim a ambas as perguntas, parabéns. Você está pronto para ser presidente de algum país da América Latina. Foi esse, afinal, o comportamento dos presidentes Álvaro Uribe (Colômbia), Hugo Chávez (Venezuela) e Rafael Correa (Equador), na cúpula do Grupo do Rio, recém-encerrada na República Dominicana.
Depois os políticos se queixam do crescente distanciamento entre representantes e representados, da crescente indiferença (ou repúdio ou nojo) dos mortais comuns ao jogo político.
Sempre haverá algum debilóide com aquela visão binária (e indigente) para retrucar: ah, então você queria que eles fossem à guerra? (Ou aos tapas, porque meter-se na selva mesmo e lá trocar tiros, nenhum deles nem passa perto).
O problema não é ir ou não à guerra ou aos tapas, mas ser sério ou não. É, no caso, não ter armado o formidável imbróglio que armaram. Se fossem sérios não precisariam depois praticar essas cenas explícitas de hipocrisia.
A América Latina está saindo da era do realismo mágico, tão bem narrado por Gabriel García Márquez, para cair na farsa. Ficam esses valentões de palácio a berrar contra o imperialismo, mas:
1) Correa não mudou a dolarização introduzida por um de seus antecessores, o que é ceder parte da soberania equatoriana ao império;
2) Chávez continua vendendo a maior fatia de seu petróleo para os Estados Unidos, segundo ele responsável por todos os males do planeta ou além dele. Cães que ladram para a Lua são até engraçadinhos. Governantes que o fazem são ridículos.

Queremos a infância para nós - Rosely Sayão

O mundo anda bem atrapalhado: de um lado, temos crianças que se comportam, se vestem, falam e são tratadas como adultos. Do outro, adultos que se comportam, se vestem, falam e são tratados como crianças. Pelo jeito, infância e vida adulta têm hoje pouco a ver com idade cronológica.
Não é preciso muito para observar sinais dessa troca: basta olhar as pessoas no espaço público. É corriqueiro vermos meninas vestidas com roupas de adultos, inclusive sensuais: blusas e saias curtas, calças apertadas, meia-calça e sapatos de salto. E pensar que elas precisam é de roupa folgada para deixar o corpo explodir em movimentos que devem ser experimentados... Mas sempre há um traço que trai a idade: um brinquedo pendurado, um exagero de enfeites, um excesso de maquiagem etc.
Se olharmos as adultas, vestidas com o mesmo tipo de roupa das meninas descritas acima, vemos também brinquedos, carregados como enfeites ou amuletos: nos chaveiros, nas bolsas, nos telefones celulares, nos carros. Isso sem falar nas mesas de trabalho, enfeitadas com ícones do mundo infantil.
Criança pequena adora ter amigo imaginário, mas essa maravilhosa possibilidade tem sido destruída, pouco a pouco, pelo massacre da realidade do mundo adulto, que tem colaborado muito para desfazer a fantasia e o faz-de-conta. Mas os legítimos representantes desse mundo, por sua vez, não hesitam em ter o seu. Ultimamente, ele tem sido comum e ganhou o nome de deus. Não me refiro ao Deus das religiões e alvo da fé. A idéia de deus foi privatizada, e cada um tem o seu, à sua imagem e semelhança, mesmo sem professar religião nenhuma.
O amigo imaginário dos adultos chamado de deus é aquele com quem eles conversam animadamente, a quem chamam nos momentos de estresse, a quem recorrem sempre que enfrentam dificuldades, precisam tomar uma decisão ou anseiam por algo e, principalmente, para contornar a solidão. Nada como ter um amigo invisível, já que ele não exige lealdade, dedicação nem cobra nada, não é?
E o que dizer, então, das brincadeiras infantis que muitos adultos são obrigados a enfrentar quando fazem cursos, freqüentam seminários ou assistem a aulas? É um tal de assoprar bexigas, abraçar quem está ao lado, acender fósforo para expressar uma idéia, carregar uma pedra para ter a palavra no grupo, escolher um bicho como imagem de identificação, usar canetas coloridas para fazer trabalhos etc.
Mas, se existe uma manifestação comum a crianças e adultos para expressar alegria, contentamento, comemoração e afins, ela tem sido o grito. Que as crianças gritem porque ainda não descobriram outras maneiras de expressar emoções, dá para entender. Aliás, é bom lembrar que os educadores não têm colaborado para que elas aprendam a desenvolver outros tipos de expressão. Mas os adultos gritarem desesperada e estridentemente para manifestar emoção é constrangedor. Com tamanha confusão, fica a impressão de que roubamos a infância das crianças porque a queremos para nós, não?

sexta-feira, 7 de março de 2008

Faltam estadistas - Luis Fernado Veríssimo

A Colômbia não tem só mais soldados e ar- mas do que a Venezuela e o Equador juntos, como mostram os gráficos que os jornais têm publicado sobre essa possível meleca na região. Tem mais prática em guerra e violência do que todo o resto da América do Sul. Lá, liberais e conservadores já foram para o pau, em guerras civis, mais de uma vez. O clima de confronto permanente e a rotina da violência antecedem as lutas contra o narcotráfico e entre as Farc , militares e paramilitares. Vêm do século dezenove, fazem parte do cotidiano e das tradições políticas dos colombianos - que, no entanto, dizem todos, vivem num país raro também por suas outras tradições, como a de uma elite cultural importante e a da rara criatividade dos seus artistas, e não é preciso nem lembrar Garcia Márquez, Botero - ou Fredy Rincon.
Meu pai trabalhou na Organização dos Estados Americanos, onde conheceu Alberto Lleras Camargo, que já tinha sido presidente da Colômbia e era então secretário-geral da OEA. Um cargo onde não parecia estar muito confortável, com a sua terra dominada por uma ditadura militar que perseguia liberais como ele. Em 1957, de volta a Colômbia, Lleras Camargo liderou o movimento que derrubou o ditador Gustavo Rojas Pinilla e depois o governo de coalizão liberal/conservador - inédito na história do país - que o substituiu, e que conseguiu ficar no poder por doze anos relativamente pacíficos. Nas suas memórias, meu pai o descreveu como "um homem lúcido, inteligente e bravo" cujo "comportamento ulterior revelou sua fibra física e moral", e como "o único político latino-americano, entre todos os que encontrei, que possuía realmente qualidades de estadista". Não me lembro de jamais ter visto a figura de Lleras Camargo, mas a admiração do meu pai de certa forma transformou-o num parâmetro para a minha imaginação juvenil. Anos depois, era ao seu exemplo que eu recorria para tentar entender o paradoxo colombiano.
Ele era a imagem do melhor que a aristocracia latino-americana poderia produzir, e ao mesmo tempo um produto daquela sociedade em eterno conflito, daquele tiroteio interminável. Liberais e conservadores enfrentam-se em todo o continente, mas é na Colômbia que está a linha de choque. Lleras Camargo morreu em 1990, informa-me o Google. Não sei se o paradoxo colombiano produziu outros como ele. Sem dúvida o que falta à região, e à situação criada com a invasão colombiana, a indignação do Equador às bravatas do Chaves, é um estadista. Mas desconfio que não fazem mais lleras camargos como antigamente.

Em casa - ELIANE CANTANHÊDE

Não há crise boa, mas sempre se podem tirar boas lições de uma crise. Uma dessas lições agora é que a OEA (Organização dos Estados Americanos) não apenas ressurgiu das cinzas como conseguiu algo inédito, ou pelo menos muito raro, ao discutir o conflito Colômbia-Equador. Os EUA não ficaram no centro das discussões e das decisões. Prevaleceu a diplomacia latino-americana.
A ofensiva diplomática dos países mais moderados do continente, como Brasil, Chile e Argentina, surtiu efeito: a OEA condenou um ato, não um país. Condenou a violação territorial do Equador, sem atacar diretamente o governo da Colômbia. Isso resultou numa decisão por aclamação, com Rafael Correa (Equador) e Alvaro Uribe (Colômbia) concordando com os termos e com as duas decisões práticas: 1) a criação de uma comissão de investigação das circunstâncias em que forças militares colombianas aniquilaram um acampamento das Farc em solo equatoriano; 2) uma reunião de chanceleres no próximo dia 17 para avaliar resultados.
"É o início do fim da crise", ouvi de um diplomata de primeiro escalão. Mas ainda há muito o que fazer. No mínimo, os "bombeiros" ganham tempo, enquanto trabalham intensamente para obter um pedido de desculpas formal e incisivo do colombiano Uribe e se preparam para apaziguar os ânimos, ainda exaltados, do equatoriano Correa.
Lula e Celso Amorim conseguiram manter o Brasil muitíssimo bem posicionado, em condições de tanto negociar com Uribe quanto com Correa, junto com Chile e Argentina. Para isso, recorreram desde o início à mesma estratégia que veio a ser adotada pela OEA: condenar atos, não governos; sugerir a comissão para chegar a uma versão única do episódio; tirar os belicosos Chávez e Bush da jogada.
Resolvido o agudo da crise, agora é tentar reconciliar Colômbia e Equador em níveis de civilidade, sem esquecer as Farc, é claro.

quinta-feira, 6 de março de 2008

De embriões e de vida - Zuenir Ventura

Toda vez que a Igreja Católica se opõe à ciência, como no caso das células-tronco embrionárias que começa a ser julgado hoje no STF, ela nos remete a uma data que gostaríamos de esquecer: 22 de junho de 1633, o dia em que condenou o astrônomo Galileu Galilei por ter defendido o princípio de que a Terra gira em torno do Sol, de Nicolau Copérnico. Para não arder na fogueira, Galileu se desdisse. Quase 200 anos depois, a Igreja retirou sua obra da lista de livros proibidos, e em 1992 repudiou a acusação, porque, segundo o Papa João Paulo II, o caso Galileu tinha virado símbolo da "suposta rejeição do progresso científico por parte da Igreja Católica e o obscurantismo dogmático em oposição à livre busca da verdade".
O engano levou séculos para ser corrigido e mesmo assim não serviu de lição. A Igreja continua tendo dificuldade de aceitar o avanço da ciência, quer ele se apresente em forma de pílula anticoncepcional ou das atuais pesquisas, ainda que em 2005 elas já tenham sido aprovadas pela maioria de um Congresso que não tem nada de herege (em seguida, a Procuradoria Geral da República contestou a lei). Os argumentos contra a regulamentação se baseiam na hipótese de que os estudos atentariam contra o direito à vida e seriam uma porta aberta à permissão do aborto. A geneticista Mayana Zatz, respeitada especialista, autora de quase 300 trabalhos científicos, acha um "absurdo" a alegação.
Segundo ela, os países que já permitem pesquisas com células-tronco de embriões determinam que eles tenham no máximo catorze dias de desenvolvimento, enquanto no Brasil os embriões congelados têm menos ainda, entre três e cinco dias. "Estamos falando de embriões que nunca estiveram num útero, nem nunca estarão. Não existe nenhuma possibilidade de vida para eles."
Assim, o que está em jogo não é a infindável discussão sobre a origem da vida ou o direito a ela, mas se é justo descartar um material que pode salvá-la e que já existe nos laboratórios de fertilização, pois as células-tronco embrionárias são capazes de se converter em todos os tipos de célula do nosso corpo (as adultas só formam alguns tecidos e não servem para pessoas com doenças genéticas) e formarem um ser humano completo. Em outras palavras, oferecem a possibilidade de curar doenças graves como o mal de Parkinson e de tirar paraplégicos das cadeiras de rodas -- estes, sem dúvida, seres vivos.
Talvez por isso é que, como revelou o repórter Antônio Góis, a população católica seja contrária à posição oficial da Igreja no caso. Quando o Ibope perguntou aos entrevistados se consideravam "uma atitude em defesa da vida" apoiar as pesquisas com células-tronco embrionárias, 94% responderam que sim. Entre as pessoas com nível superior, a aprovação chegou a 97%.

Guerra Fria e Quente - ELIANE CANTANHÊDE

Vinte anos depois da queda do Muro de Berlim e seis após Lula renegar o Foro de São Paulo para aderir ao neoliberalismo que condenava nos tucanos, a América Latina ainda vive a Guerra Fria.
Estamos levemente atrasados, convenhamos. E a brincadeira começa a ficar perigosa.
Na conversa que tive ontem com o presidente do Equador, Rafael Correa, ele não só repetiu que estava disposto a chegar "às últimas conseqüências", como vinha insistindo, mas foi adiante: "não excluo a hipótese de guerra", disse.
A impressão é que algo não caminhou bem na conversa com Lula, pela manhã, no Planalto. A intensão de Lula era serenar os ânimos, mas Correa entrou e saiu atirando.
Também negou o pedido do presidente brasileiro para se encontrar com o inimigo Álvaro Uribe, da Colômbia, não aceitou restringir o conflito a uma questão só bilateral e ainda por cima recusou o papel de intermediário do Brasil.
O discurso de Correa está muito mais para Hugo Chávez do que para Lula da Silva, que, aliás, não deu as caras para tirar fotos ao lado do equatoriano. A prevista entrevista coletiva de Correa virou um pronunciamento sem direito a perguntas, e quem o acompanhou no Planalto -em silêncio- foi o chanceler Celso Amorim.
Falar em distensão, em serenar os ânimos, todas essas coisas, está ficando bastante difícil. Até porque, na Guerra Fria extemporânea e levemente ridícula da América Latina, a ameaça militar está falando mais alto do que a diplomacia.
Se vai ter guerra de fato? Muitíssimo improvável, mas o momento é bastante grave. Se fosse só a Colômbia de um lado e o Equador de outro, ainda assim seria difícil, mas mais fácil e negociável. Mas o que de fato existe hoje são os padrinhos, EUA e Venezuela, em lados opostos. Aí está o perigo.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Um presente - DANUZA LEÃO

DIA SIM, DIA NÃO, eu, que moro no Rio, ando na Lagoa durante uma hora. Andar é uma mania dos cariocas, para conservar a saúde.

Meu horário é seis da tarde, mas nesse último mês tem sido difícil. Os dias amanhecem lindos, ensolarados, céu azul, mas a partir das três horas o céu começa a ficar cinza, e daí a pouco começa a chover. Um verão atípico, pois isso tem acontecido quase todos os dias. Na última segunda-feira, quando desci para andar, o céu era um chumbo, e fiquei na dúvida: vai ou não chover? Perguntei a meu porteiro, ao do edifício ao lado, os dois me tranqüilizaram: não, não vai chover. Acreditei, e lá fui eu.
Quando cheguei à Lagoa, o tempo estava meio estranho: olhando para o lado da Barra, céu azul e sol. Do outro lado, nuvens negras anunciavam um temporal.
Como eu já estava indo, resolvi apostar no melhor e comecei a andar. Uns 800 metros depois caiu uma chuva daquelas, mas daquelas mesmo. Dizem que o mundo é dividido entre os que usam e os que não usam guarda-chuva e sou das que acham a chuva uma delícia, sobretudo quando está fazendo calor; mas aquela era demais. Para piorar a situação, tinha ido ao cabeleireiro e feito uma escova naquela manhã, e se meu cabelo molhasse seria uma catástrofe. Mas não havia nada a fazer, a não ser esperar. Sentei num banco debaixo de uma árvore, rezando para a chuva passar. Enquanto esperava, olhei o céu: a mesma coisa. De um lado sol, do outro lado chuva. Foram 15 ou 20 minutos difíceis: se decidisse voltar para casa, ia ficar encharcada. Quanto tempo ainda duraria aquela tortura?
A chuva, daquelas bem de verão, passou. As últimas gotas ainda caíam quando voltei a andar, e quando olhei para o céu, o milagre: um arco-íris. Na verdade não é um milagre, é um fenômeno explicado pela ciência e que acontece às vezes, mas que é tão lindo, mas tão lindo, que é difícil de acreditar que esteja mesmo acontecendo. O enorme arco-íris ligava um morro a outro.
Existem alguns arco-íris que são meio pela metade, e com cores meio desbotadas. Mas aquele era tão lindo, tão inteiro, tão perfeito, que parecia feito a compasso; as cores vivas, nítidas, belas, um verdadeiro presente da natureza -e que presente.
Na volta, comecei a prestar mais atenção ao caminho que faço todos os dias, automaticamente. Algumas árvores haviam florescido e as flores estavam caídas no chão, dando a impressão de serem tapetes amarelos.
E havia outras, nas quais nasce, no tronco, um tipo de flor em vários tons de vermelho; vi turistas estrangeiros maravilhados, pegando as flores, provavelmente para levar para seus países, de lembrança. Elas eram lindas, e eu nunca havia notado que existiam.
Quando fiz o caminho de volta, o sol continuava a brilhar, e voltei para casa feliz; mais feliz do que se tivesse ido a qualquer museu e visto as mais lindas obras de arte.
Feliz e pensativa; como conheço razoavelmente a natureza humana -a minha, sobretudo-, não será impossível que em uns meses, quando estiver fazendo o mesmo percurso, no lugar de prestar atenção nas montanhas, na luz, que muda a cada dia, nas flores, que podem ter caído ou estarem enfeitando as árvores, esteja distraída e tensa, pensando que é hora de declarar o imposto de renda, ou no inevitável novo escândalo que acontecerá no país.
E isso -quando e se acontecer- será muito melancólico.

terça-feira, 4 de março de 2008

O lendário país do recall - MOACYR SCLIAR

Leitora manda boneca para recall e não a recebe de volta. "Como explicar para uma criança que seus brinquedos foram embora há três meses e não voltaram?" Cotidiano, 18 de fevereiro de 2008.

"MINHA QUERIDA DONA: quem lhe escreve sou eu, a sua fiel e querida boneca, que você não vê há três meses. Sei que você sente muitas saudades, porque eu também sinto saudades de você. Lembro de você me pegando no colo, me chamando de filhinha, me dando papinha... Você era, e é, minha mãezinha querida, e é por isso que estou lhe mandando esta carta, por meio do cara que assina esta coluna e que, sendo escritor, acredita nas coisas da imaginação.
Posso lhe dizer, querida, que vivi uma tremenda aventura, uma aventura que em vários momentos me deixou apavorada. Porque tive de viajar para o distante país do recall.
Aposto que você nem sabia da existência desse lugar; eu, pelo menos, não sabia. Para lá fui enviada. Não só eu: bonecas defeituosas, ursinhos idem, eletrodomésticos que não funcionavam e peças de automóvel quebradas. Nós todos ali, na traseira de um gigantesco caminhão que andava, andava sem parar.
Finalmente chegamos, e ali estávamos, no misterioso e, para mim, assustador país do recall. Um homem nos recebeu e anunciou, muito secamente, que o nosso destino em breve seria traçado: as bonecas (e os ursinhos, e outros brinquedos, e objetos vários) que tivessem conserto seriam consertados e mandados de volta para os donos; quanto tempo isso levaria era imprevisível, mas três meses era o mínimo. Uma boneca que estava do meu lado, a Liloca, perguntou, com os olhos arregalados, o que aconteceria a quem não tivesse conserto. O homem não disse nada, mas seu sorriso sinistro falava por si.
Passamos a noite num enorme pavilhão destinado especialmente às bonecas. Éramos centenas ali, algumas com probleminhas pequenos (um braço fora do lugar, por exemplo), outras já num estado lamentável. Estava muito claro que para várias de nós não haveria volta.
Naquela noite conversei muito com minha amiga Liloca -sim, querida dona, àquela altura já éramos amigas. O infortúnio tinha nos unido. Outras bonecas juntaram-se a nós e logo formamos um grande grupo. Estávamos preocupadas com o que poderia nos suceder.
De repente a Liloca gritou: "Mas gente, nós não somos obrigados a aceitar isso! Vamos fazer alguma coisa!". Nós a olhamos, espantadas: fazer alguma coisa? Mas fazer o quê?
Liloca tinha uma resposta: vamos tomar o poder. Vamos nos apossar do país do recall.
No começo, aquilo nos pareceu absurdo. Mas Liloca sabia do que estava falando. A mãe da dona dela tinha sido uma militante revolucionária e sempre falava nisso, na necessidade de mudar o mundo, de dar o poder aos mais fracos.
Ora, dizia Liloca, ninguém mais fraco do que nós, pobres, desamparados e defeituosos brinquedos. Não deveríamos aguardar resignadamente que decidissem o que fazer com a gente.
De modo, querida dona, que estamos aqui preparando a revolução. Breve estaremos governando o país do recall. Mas não se preocupe, eu a convidarei para uma visita. Você poderá vir a qualquer hora. E não precisará de recall para isso."

segunda-feira, 3 de março de 2008

A questão - Luis Fernando Veríssimo

É difícil imaginar um negro como Barack Obama sendo eleito presidente - do Brasil. Dos Estados Unidos, talvez. Lá um negro já chegou a secretrário de Estado, e foi substituído no cargo por uma negra. Desculpe: afrodescendentes. Pelo menos não escrevi "um negão como Barak Obama", ou, para mostrar que não sou racista, "um negrinho".
A diferença entre um país e outro é essa. Lá o racismo é uma questão nacional. Aqui uma ficção de integração dilui a questão racial. E se a questão não existe, se ninguém é racista, por que nos preocuparmos com denominações corretas ou incorretas? Só quando a ficção é desafiada, como no caso das cotas universitárias, é que o apartheid que não se reconhece aparece. Um dos marcos das relações raciais nos Estados Unidos não foi a primeira vez em que um negro interpretou um herói no cinema, provavelmente o Sidney Poitier. Nem a primeira vez em que um negro e uma branca, ou vice-versa, namoraram na tela. Foi a primeira vez em que um negro foi o vilão do filme. Colin Powell e Condoleezza Rice, que chegaram a secretários de Estado, e o próprio Obama, devem suas carreiras a esse vilão histórico, que significou o fim dos estereótipos e a aceitação, sem melindres, de que negro também pode ser ruim, igual a branco. Se a cor da pele não determinava mais que ele fosse sempre retratado como um inferior virtuoso ou uma vítima, também não o descriminava de outras maneiras. Powell e Rice levaram essa reversão de esteréotipos ainda mais longe.
Os dois são do partido republicano. Como Clarence Thomas, único juiz negro da Suprema Corte americana que também é um dos seus membros mais conservadores. Claro que a cor da pele vai ser um fator na eleição ou não do Obama, como o fato de ser mulher vai ajudar ou não a Hillary. Por isso mesmo, sua possível eleição seria uma prova dessa transformação da questão racial no país, uma vitória numa guerra por direitos iguais que lá - ao contrário do Brasil - nunca foi disfarçada, ou desconversada. Aqui a miscigenação significou que alguns quase-negros, ou só um pouco afro-descendentes, chegassem ao poder, mas miscigenação entre nós não tem significado integração por vias naturais, e sim apenas outra forma de despolitizar e adiar a questão.
Obama será o candidato dos democratas? Estão comparando sua campanha com a de Bob Kennedy, pelo entusiasmo que provoca numa faixa de idade que não se interessava tanto por política desde a mobilização contra a guerra do Vietnã. Li que 40 por cento dos americanos que podem votar este ano nunca conheceram outro presidente que não fosse um Bush ou o Clinton, e Hillary seria outro Clinton nessa dança de dinastias. Assim, Obama seria uma novidade em mais do que o sentido racial. Como se precisasse outros.
Na comparação com Bob Kennedy, claro, ninguém ainda lembrou (pelo menos não sem bater na madeira) que aquela novidade terminou numa poça de sangue, no chão de uma cozinha de hotel. Batamos todos na madeira.

O príncipe e Palocci - CLÓVIS ROSSI

Quer dizer, então, que o príncipe Harry serviu dez semanas no Afeganistão? Queria saber se há um só filho, já não digo de presidente da República, mas de um simples vereador da mais remota cidadezinha do mais remoto Estado brasileiro, a serviço com as tropas brasileiras no Haiti. Aliás, há algum filho de autoridade que não seja dispensado do serviço militar obrigatório?

O "Daily Telegraph" festejou a presença do príncipe assim: "Excluir o príncipe de operações de combate -como o Ministério da Defesa originalmente o fez, por causa do medo de que poria em particular perigo a sua unidade- sugeriria que há uma regra para os membros da família real e outra para o resto das Forças Armadas".
É um exagero. É óbvio que a família real britânica goza de "regras" (leia-se privilégios) que não estão ao alcance dos mortais comuns.
Mas o fato de Harry não ter sido poupado de uma estada nesse paraíso turístico chamado Afeganistão, comparado às "regras" não escritas que valem para a aristocracia brasileira não coroada nem titulada, é todo um compêndio sobre hábitos e costumes nada republicanos no pobre país tropical.
Por aqui, predomina o comportamento monárquico absolutista de quem detém fatias de poder, de que dá prova o caso Antonio Palocci.
Posso estar sendo ingênuo, mas continuo achando que Palocci não é um delinqüente. Cometeu, sim, uma delinqüência, na violação do sigilo do caseiro Francenildo dos Santos Costa.
Mas parece razoável atribuir a delinqüência não a um DNA delinqüencial mas à certeza de que a uma autoridade tudo está permitido, ainda mais contra os de baixo. Ou, para citar o "Telegraph", tinha a certeza de que "há uma regra para os membros da família real [no caso, o ministério da República] e outra para o resto".
É a República imperial.

domingo, 2 de março de 2008

O diabo e a política - CARLOS HEITOR CONY

Naquela aldeia, todos roubavam de todos, matava-se, fornicava-se, jurava-se em falso, todos caluniavam todos. Horrorizado com os baixos costumes, o frade da aldeia resolveu dar o fora, pegou as sandálias, o bordão e se mandou.
Pouco adiante, já fora dos muros da aldeia, encontrou o Diabo encostado numa árvore, chapéu de palha cobrindo seus chifres. Tomava água de coco por um canudinho, na maior sombra e água fresca desde que se revoltara contra o Senhor, no início dos tempos.
O frade ficou admirado:
"O que está fazendo aí, nessa boa vida? Eu sempre pensei que você estaria lá na aldeia, infernizando a vida dos outros. Tudo de ruim que anda por lá era obra sua, assim eu pensava até agora. Vejo que estava enganado. Você não quer nada com o trabalho. Além de Diabo, você é um vagabundo!".
Sem pressa, acabando de tomar o seu coco pelo canudinho, o Diabo olhou para o frade com pena:
"Para quê? Eu trabalho desde o início dos tempos para desgraçar os homens e confesso que ando cansado. Mas não tinha outro jeito. Obrigação é obrigação, sempre procurei dar conta do recado. Mas agora, lá na aldeia, o pessoal resolveu se politizar. É partido pra lá, partido pra cá, todos têm razão, denúncias, inquéritos, invocam a ética, a transparência, é um pega-pra-capar generalizado. Eu estava sobrando, não precisavam mais de mim para serem o que são, viverem no inferno em que vivem".
Jogou o coco fora e botou um charuto na boca. Não precisou de fósforo, bastou dar uma baforada e de suas entranhas saiu o fogo que acendeu o charuto:
"Quando entra a política, eu dou o fora, não precisam mais de mim". (Este texto foi publicado na Folha Online anos atrás. Reproduzo-o pela sua atualidade).

sábado, 1 de março de 2008

Passagem pela adolescência - Rosely Sayão

"Filho criado, trabalho redobrado." Esse conhecido ditado popular ganha sentido quando chega a adolescência. Nessa fase, o filho já não precisa dos cuidados que os pais dedicam à criança, tão dependente. Mas, por outro lado, o que ele ganha de liberdade para viver a própria vida resulta em diversas e sérias preocupações aos pais. Temos a tendência a considerar a adolescência mais problemática para os pais do que para os filhos. É que, como eles já gozam de liberdade para sair, festejar e comemorar sempre que possível com colegas e amigos de mesma idade e estão sempre prontos a isso, parece que a vida deles é uma eterna festa. Mas vamos com calma porque não é bem assim.
Se a vida com os filhos adolescentes, que alguns teimam em considerar um fato aborrecedor, é complexa e delicada, a vida deles também o é. Na verdade, o fenômeno da adolescência, principalmente no mundo contemporâneo, é bem mais complicado de ser vivido pelos próprios jovens do que por seus pais. Vejamos dois motivos importantes.
Em primeiro lugar, deixar de ser criança é se defrontar com inúmeros problemas da vida que, antes, pareciam não existir: eles permaneciam camuflados ou ignorados porque eram da responsabilidade só dos pais. Hoje, esse quadro é mais agudo ainda, já que muitos pais escolheram tutelar integralmente a vida dos filhos por muito mais tempo.
Quando o filho, ainda na infância, enfrenta dissabores na convivência com colegas ou pena para construir relações na escola, quando se afasta das dificuldades que surgem na vida escolar -sua primeira e exclusiva responsabilidade-, quando se envolve em conflitos, comete erros, não dá conta do recado etc., os pais logo se colocam em cena. Dessa forma, poupam o filho de enfrentar seus problemas no presente, é claro, mas também passam a idéia de que eles não existem por muito mais tempo.
É bom lembrar que a escola -no ciclo fundamental- deveria ser a primeira grande batalha da vida que o filho teria de enfrentar sozinho, apenas com seus recursos, como experiência de aprender a se conhecer, a viver em comunidade e a usar seu potencial com disciplina para dar conta de dar os passos com suas próprias pernas.
Em segundo lugar, o contexto sociocultural globalizado atual, com ideais como consumo, felicidade e juventude eterna, por exemplo, compromete de largada o processo de amadurecimento típico da adolescência, que exige certa dose de solidão para a estruturação de tantas vivências e, principalmente, interlocução. E com quem os adolescentes contam para conversar?
Eles precisam, nessa época de passagem para a vida adulta, de pessoas dispostas a assumir o lugar da maturidade e da experiência com olhar crítico sobre as questões existenciais e da vida em sociedade para estabelecer com eles um diálogo interrogador. Várias pesquisas já mostraram que os jovens dão grande valor aos pais e aos professores em suas vidas. Entretanto, parece que estamos muito mais comprometidos com a juventude do que eles mesmos.
Quem leva a sério questões importantes para eles em temas como política, sexualidade, drogas, ética, depressão e suicídio, vida em família, vida escolar, violência, relações amorosas e fidelidade, racismo, trabalho etc.? Quando digo levar a sério me refiro a considerar o que eles dizem e dialogar com propriedade, e não com moralismo ou com excesso de jovialidade. E, desse mal, padecem muitos pais e professores que com eles convivem.
Os adolescentes não conseguem desfrutar da solidão necessária nessa época da vida, mas parece que se encontram sozinhos na aventura de aprender a se tornarem adultos. Bem que merecem nossa companhia, não?