quinta-feira, 29 de março de 2007

Tropa de choque - CARLOS HEITOR CONY

Ninguém escondeu, nem mesmo o próprio presidente da República: o novo ministério, que é o velho ministério recauchutado, não é uma equipe executiva para levar o governo a algum desempenho específico. Evidente que os ministros despacharão, assinarão processos, farão declarações disso e daquilo, mas o critério que os escolheu, além de ser político (o que é natural), é sobretudo tático.
Com a experiência do mandato anterior, Lula tentou garantir uma base aliada no Congresso, não só para votar projetos do governo mas para impedir a criação de CPIs. Cada ministro representa, em tese, determinado número de votos no plenário das duas Casas do Legislativo.
Não é nada, ele passou raspando pelo impeachment com as comissões anteriores -foi salvo porque a oposição parece que se contentou com a cassação de José Dirceu e com o terremoto que sacudiu o PT, degolando a cabeça de notáveis parceiros de Lula.
Não se sabe o que vem pela frente, e o governo precisa da maioria estável para não repetir o vexame do mensalão -dinheiro grosso que corria a cada votação de interesse do Planalto.
Além de medida preventiva, ao garantir a maioria, Lula terá espaço para articular a mudança na Constituição que lhe garanta um terceiro mandato. Tem tempo para isso e trunfos. Mudará os ministros que não lhe tragam votos concretos na hora adequada.
Em princípio, não há na nova equipe um candidato a superministro. Os dois anteriores (Dirceu e Palocci) foram ceifados, serviram de escudo para proteger a figura central do governo. Mesmo assim, houve momentos em que a coisa parecia balançar. Lula escapou porque, entre outras coisas, além de garantir que não sabia de nada, não se empenhou em defender os dois cabeças de seu governo anterior.

domingo, 25 de março de 2007

Feias, bonitas - DANUZA LEÃO

ERAM DUAS irmãs, uma muito bonita e a outra - bem, a outra não. A bonita tinha um corpo como qualquer mulher gostaria de ter (sem ser esquálida), era não só elegante, como se vestia de maneira diferente. Era original, criativa, isso sem ser extravagante nem exibida. Um show de mulher, que quando entrava nos lugares era olhada por homens e mulheres, com admiração.
Eu, ainda garota, era amiga das duas; inicialmente da mais bonita, pois era com ela que saía à noite, ia às festas, aos lugares onde as coisas aconteciam. A outra era casada; mal casada mas casada, e nos víamos eventualmente para almoçar. Ela era simpática, agradável, mas perto da irmã, desaparecia. E a irmã tinha sempre muitas histórias boas para contar.
Histórias dos bastidores da alta costura (tudo isso se passou em Paris), das pessoas famosas que ela conhecia, e sobretudo dos seus "dramas" amorosos. Ela nunca tinha um namorado só e, como nenhum morava em Paris, isso facilitava bem as coisas.
Ainda me lembro: naquela época -estou falando dos anos 50- os telefones eram precários, e as comunicações aconteciam por telegrama. Um dos namorados era príncipe -havia tantos, sobretudo na Itália- , se chamava Galvano e morava na Sicília. Volta e meia chegava um telegrama, marcando de encontrá-la em Palermo no fim de semana; e lá ia ela. O outro morava em Milão, e o encontro seria em Roma. Na época, nunca me ocorreu por que razão eles não iam nunca a Paris; era assim e pronto.
Ela sofria, e eles aprontavam, sumiam, namoravam outras, e assim foi indo a vida. Um dia ela achou que estava na hora de sossegar e se casou com um belo italiano; não me parece que tenha sido um grande amor, mas foi um casamento que funcionou. Ela foi morar em Milão, trancou-se em casa, e sua única distração, digamos assim, era a moda. Comprava tudo que aparecia de novo, até que um dia teve uma doença ruim e morreu.
Enquanto isso a vida da irmã continuava: separou-se do primeiro marido -porque quis-, marido esse que passou anos fazendo tudo para que ela voltasse. Se casou de novo, com um produtor de cinema, e o casamento, muito feliz, durou até que um dia ele teve um infarto fulminante e morreu.
Ela sofreu, mas não deixou a peteca cair; tempos depois estava casada de novo, com o homem que mais amou, e que trabalhava no show business. Foi um amor louco, absoluto; ele tinha uns 15 anos menos que ela, era lindo, e morreu aos 33 anos de cirrose. Como ela sofreu; parecia que nunca mais levantaria a cabeça.
É preciso aqui fazer uma pausa: desde que a irmã se casou, fomos ficando cada vez mais amigas. Fui percebendo o quanto ela era generosa, interessada pelas pessoas, pelo mundo em geral, sempre pronta a fazer agrados, carinhos, tolerante e paciente com todos que a rodeavam. Um dia conheceu seu último marido, com o qual está casada há 30 anos. Um ótimo casamento, devo dizer.
E fiquei pensando que os atributos físicos, tão valorizados, fazem com que as pessoas se esqueçam do principal, do que realmente importa, e que faz com que as pessoas se gostem, fiquem amigas, até se apaixonem. Nunca nenhum homem largou essa minha amiga; já a bonita teve uma vida sentimental atrapalhada, eu diria mesmo infeliz, e não sei se por acaso ou por que, eu comecei amiga de uma, o tempo passou e fui ficando amiga da outra como nunca havia sido da primeira.
E ainda sou.

sábado, 24 de março de 2007

Como Comecei a Escrever - Rubem Braga

Já contei em uma crônica a primeira vez que vi meu nome em letra de forma: foi no jornalzinho "O ltapemirim", órgão oficial do Grêmio Domingos Martins, dos alunos do colégio Pedro Palácios, de Cachoeiro de Itapemirim. O professor de Português passara uma composição "A Lágrima" — e meu trabalho foi julgado tão bom que mereceu a honra de ser publicado.Eu ainda estava no curso secundário quando um de meus irmãos mais velhos — Armando — fundou em Cachoeiro um jornal que existe até hoje — o "Correio do Sul". Fui convidado a escrever alguma coisa, o que também aconteceu com meu irmão Newton, que fazia principalmente poemas.Eu escrevia artigos e crônicas sobre assuntos os mais variados; no verão mandava da praia de Marataizes uma crônica regular, chamada "Correio Maratimba". Quando fui para o Rio (na verdade para Niterói) por volta dos 15 anos, mandava correspondência para o Correio. Continuei a fazer o mesmo em 1931, quando mudei para Belo Horizonte.A essa altura meu irmão Newton trabalhava na redação do "Diário da Tarde" de Minas. Em começo de 1932 ele deixou o emprego e voltou para Cachoeiro; herdei seu lugar no jornal.
Passei então a escrever diária e efetivamente, e fui aprendendo a redigir com os profissionais como Octavio Xavier Ferreira e Newton Prates. Quando terminei meu curso de Direito, resolvi continuar trabalhando em jornal.Fazia crônicas, reportagens e serviços de redação. Ainda em 1932 tive uma experiência bastante séria: fuI fazer reportagem na frente de guerra da Mantiqueira missão aventurosa porque a direção de meu jornal'era favorável à Revolução Constitucionalista dos paulistas, e eu estava na frente getulista. Acabei preso e mandado de volta.A essa altura eu já era um profissional de imprensa, e nunca mais deixei de ser.

quarta-feira, 21 de março de 2007

COMO COMECEI A ESCREVER - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Aí por volta de 1910 não havia rádio nem televisão, e o cinema chegava ao interior do Brasil uma vez por semana aos domingos. As notícias do mundo vinham pelo jornal, três dias depois de publicadas no Rio de Janeiro. Se chovia a potes, a mala do correio aparecia ensopada, uns sete dias mais tarde. Não dava para ler o papel transformado em mingau.
Papai era assinante da Gazeta de Notícias, e antes de aprender a ler eu me sentia fascinado pelas gravuras coloridas do suplemento de Domingo. Tentava decifrar o mistério das letras em redor das figuras, e mamãe me ajudava nisso. Quando fui para a escola pública, já tinha a noção vaga de um universo de palavras que era preciso conquistar.
Durante o curso, minhas professoras costumavam passar exercícios de redação. Cada um de nós tinha de escrever uma carta, narra um passeio, coisas assim. Criei gosto por esse dever, que me permitia aplicar para determinado fim o conhecimento que ia adquirindo do poder de expressão contido nos sinais reunidos em palavras.
Daí por diante as experiências foram se acumulando, sem que eu percebesse que estava descobrindo a leitura. Alguns elogios da professora me animavam a continuar. Ninguém falava em conto ou poesia, mas a semente dessas coisas estavam germinando. Meu irmão, estudante na Capital, mandava-me revistas e livros, e me habituei a viver entre eles. Depois, já rapaz, tive sorte de conhecer outros rapazes que também gostavam de ler e escrever.
Então começou uma fase muito boa de troca de experiências e impressões. Na mesa do café-sentado ( pois tomava-se café sentado nos bares, e podia-se conversar horas e horas sem incomodar nem ser incomodado ) eu tirava do bolso o que escrevera durante o dia, e meus colegas criticavam. Eles também sacavam seus escritos, e eu tomava parte nos comentários. Tudo com naturalidade e franqueza. Aprendi muito com os amigos, e tenho pena dos jovens de hoje que não desfrutam desse tipo de amizade crítica.

terça-feira, 20 de março de 2007

Início

Início de blog, estaremos sempre aqui postando as melhores crônicas do Brasil, os que escrevem atualmente como Carlos Heytor Cony, Luis Fernendo Verissimo, Zuenir Ventura, Rubem Alves e Arnaldo Jabor, e os que já fizeram crônicas consagradas como Cecilia Meireles, Machado de Asiss, Carlos Drummond entre outros, façam seus pedidos e bem visndos ao Crônicas Brasil.

A praga - RUBEM ALVES

É BOM atentar para o que o papa diz. Porta-voz de Deus na Terra, ele só pensa pensamentos divinos. Nós, homens tolos, gastamos o tempo pensando sobre coisas sem importância tais como o efeito estufa e a possibilidade do fim do mundo. O papa vai direto ao que é essencial: "O segundo casamento é uma praga!"Está certo. O casamento não pertence à ordem abençoada do paraíso. No paraíso não havia casamento. Na Bíblia não há indicação de que as relações amorosas entre Adão e Eva tenham sido precedidas pelo cerimonial a que hoje se dá o nome de casamento: o Criador, celebrante, Adão e Eva nus, de pé, diante de uma assembléia de animais, tudo terminando com as palavras sacramentais: "E eu, Jeová, vos declaro marido e mulher. Aquilo que eu ajuntei os homens não podem separar..."Os casamentos, o primeiro, o segundo, o terceiro, pertencem à ordem maldita, caída, praguejada, pós-paraíso. Nessa ordem não se pode confiar no amor. Por isso se inventou o casamento, esse contrato de prestação de serviços entre marido e mulher, testemunhado por padrinhos, cuja função é, no caso de algum dos cônjuges não cumprir o contrato, obrigá-lo a cumpri-lo.Foi um padre que me ensinou isso. Ele celebrava o casamento. E foi isso que ele disse aos noivos: "O que vos une não é o amor. O que vos une é o contrato". Aprendi então que o casamento não é uma celebração do amor. É o estabelecimento de direitos e deveres. Até as relações sexuais são obrigações a ser cumpridas.Agora imaginem um homem e uma mulher que muito se amam: são ternos, amigos, fazem amor, geram filhos. Mas, segundo a igreja, estão em estado de pecado: falta ao relacionamento o selo eclesiástico legitimador. Ele, divorciado da antiga esposa, não pode se casar de novo porque a igreja proíbe a praga do segundo casamento. Aí os dois, já no fim da vida, são obrigados a se separar para participar da eucaristia: cada um para um lado, adeus aos gestos de ternura... Agora está tudo nos conformes. Porque Deus não enxerga o amor. Ele só vê o selo eclesial.O papa está certo. O segundo casamento é uma praga. Eu, como já disse, acho que todos são uma praga, por não ser da ordem paradisíaca, mas da maldição. O símbolo dessa maldição está na palavra "conjugal": do latim, "com"= junto e "jugus"= canga. Canga, aquela peça pesada de madeira que une dois bois. Eles não querem estar juntos. Mas a canga os obriga, sob pena do ferrão...Por que o segundo casamento é uma praga? Porque, para havê-lo, é preciso que o primeiro seja anulado pelo divórcio. Mas, se a igreja admitir a anulação do primeiro casamento, terá de admitir também que o sacramento que o realizou não é aquilo que ela afirma ser: um ato realizado pelo próprio Deus. Permitir o divórcio equivale a dizer: o sacramento é uma balela. Donde, a igreja é uma balela... Com o divórcio ela seria rebaixada do seu lugar infalível e passaria a ser apenas uma instituição falível entre outras. A igreja não admite o divórcio não é por amor à família. É para manter-se divina...A igreja, sábia, tratou de livrar seus funcionários da maldição do amor. Proibiu-os de se casarem. Livres da maldição do casamento, os sacerdotes têm a suprema felicidade de noites de solidão, sem conversas, sem abraços e nem beijos. Estão livres da praga...