sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Eles voltaram a atacar - Zuenir Ventura

Vocês se lembram daqueles telefonemas em que bandidos simulavam o seqüestro de um filho ou filha, ameaçando-os de morte se o resgate não fosse pago? O tormento parecia ter acabado, ou pelo menos não se ouvia mais falar dessas histórias de horror. Pois voltaram. Pude acompanhar dois casos próximos a mim, mas tem havido outros mais, segundo a polícia. O que há de novo é que os marginais sofisticaram os seus métodos. A encenação, por exemplo, é agora mais realista. Entre os que fazem o papel de vítima, há vozes de crianças e adolescentes que representam tão bem, são tão verossímeis, que a pessoa do outro lado do telefone, assustada e sob tensão, acaba acreditando que aqueles soluços, aqueles apelos angustiados são mesmo da filha ou do filho. Isso aconteceu com um sobrinho. "A voz era igualzinha à de minha filha. Falei como se fosse ela", conta. Ainda bem que ele, apesar do nervosismo, teve a presença de espírito de desligar o celular (antes ligavam mais para telefone fixo e, como agora, a cobrar) e conseguiu localizar a menina. Com minha irmã, foi parecido. Às cinco e meia de domingo passado, ela foi acordada com uma ligação a cobrar e ouviu a mesma história: "Estou com sua filha aqui com um revólver na cabeça, vou executá-la etc. etc." Aí entra a falsa vítima e implora aos prantos, mal podendo falar: "Mãe, pelo amor de Deus, me salva." Minha sobrinha, a suposta vítima, não estava no Brasil e só ia voltar à noite. Mas a farsa foi tão bem montada e o desespero tão grande, que também minha irmã, como meu sobrinho, acreditou ter ouvido a voz da filha, e passou mal: "Tenho certeza que a voz era dela", repetia. Ficou com essa "certeza" até a noite, só se acalmando quando ela chegou. Logo depois do telefonema, a outra filha, que estava em casa, acionou o número 190 e comunicou a ocorrência. O policial de plantão agradeceu: "Foi bom a senhora ter ligado, mas só hoje já houve cinco denúncias parecidas." Por colegas, ela soube de vários outros casos. Será que não há um meio de coibir essa prática ou de prender os autores? Antes se dizia que essas ligações partiam do presídio de segurança máxima de Bangu. Agora, que estão se generalizando, é portanto mais difícil descobrir os autores. A maneira mais eficaz de desestimular esses ataques é não atender chamadas a cobrar ou então desligar logo. O problema é que, apesar de conhecer o golpe, já tão divulgado pela imprensa, muita gente continua caindo nele. Às vezes, o bandido é ridicularizado. Um deles ligou para minha casa, caiu na secretária eletrônica e ele ficou desorientado: "É um seqüestro, pô, atende essa p... logo". Com um amigo, foi mais divertido. Ao receber a notícia de que o filho estava seqüestrado, ordenou tranqüilamente: "Pode matar, ele é muito chato." O rapaz, claro, estava do seu lado.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

A História o absolverá? - Zuenir Ventura

A renúncia de Fidel Castro recebeu da imprensa daqui e do exterior tratamento de obituário, com direito a balanço de vida e obra, e aquele tom de despedida. Obituário é a última homenagem que os jornais prestam aos mortos. Na verdade, havia razão para isso. A desistência teve muito de morte política. O que, no caso de um personagem histórico, é pior do que a morte biológica (a propósito, só Lula não viu que o amigo estava com o "estado de saúde precário".
No mês passado, saiu da visita ao enfermo dizendo que a saúde de Fidel era "impecável" e que ele estava "pronto para assumir o papel que tem em Cuba"). Para a minha geração, que acompanhou a saga dos heróis de Sierra Maestra, fazendo deles seus ídolos, foi melancólico. Camilo Cienfuegos e Che Guevara nos tinham acostumado a só sair de cena pela morte, que é como saem os mitos. Se era para se retirar desse jeito, por que não antes? Em 1995, quando o escritor Rubem Fonseca e eu estivemos em Cuba para o Prêmio Casa das Américas, já era visível o ocaso do comandante.
Num jantar no Palácio, assistimos a cenas incríveis. Cercado por um imenso cordão de puxa-sacos, o ditador se exibia para uma platéia cativa que achava graça em tudo o que ouvia. Depois, numa longa entrevista que nos deu (na saída, mandou um assessor recolher as fitas), respondeu a uma pergunta sobre por que não deixava o poder. Resignado, suspirou: "No puedo. Bem que gostaria, mas não há condição. Eles não deixam." "Eles" era o povo.
Divertido também foi vê-lo vangloriar-se de andar na rua sem segurança, e em seguida ser acompanhado ao banheiro por dois guarda-costas. Estava conosco Senel Paz, autor do livro "O lobo, o bosque e o homem novo", que dera origem ao filme "Morango e chocolate". O escritor não era um dissidente, apenas um crítico do regime. Cuba já tinha consagrado o livro e o filme, mas o comandante se recusava a ler e a ver a história de um jovem comunista que se torna amigo de um artista gay.
O clima cultural lembrava o do Brasil dos anos 70. O país enfrentava a crise causada pelo colapso da URSS, e já se percebiam os efeitos do turismo de massa na rua: vendedores clandestinos de charuto e meninas oferecendo o corpo por dinheiro. Chamava a atenção, sobretudo, a distância entre o atraso no campo dos direitos humanos -censura, presos políticos -- e o avanço no terreno das conquistas sociais -- altos níveis de alfabetização, baixas taxas de mortalidade infantil, invejável IDH.
Era como se liberdade de expressão e justiça social fossem incompatíveis. Se então, ou antes ou depois, tivesse conciliado as duas coisas, o autor de "A História me absolverá" certamente seria absolvido por ela. Agora, dificilmente.

Um drama de Fidel - CARLOS HEITOR CONY

Dos males da mídia, não apenas a nacional, mas a internacional, a redundância é a mais constante. A renúncia de Fidel Castro, após 49 anos de poder, antecedeu a inevitável e imensa cobertura que ele teria por ocasião de sua morte, que, sinceramente, desejo estar bem longe ainda.
Já foi dito que toda a unanimidade é burra. No caso de Fidel, nunca houve unanimidade, a não ser em seus começos revolucionários, quando teve o apoio maciço de seu povo para derrubar uma ditadura. Quando da morte de Che Guevara, foram muitos os que começaram a contestar a sua linha de subserviência a Moscou. Para mostrar independência, ele expulsou alguns diplomatas soviéticos e mandou prender comunistas cubanos, entre os quais Aníbal Escalante, o mais destacado líder do partido.
A reação foi brutal. A URSS suspendeu o abastecimento de petróleo que fornecia a Cuba, as centrales que produziam açúcar ficaram sem combustível, o petroleiro diário que abastecia a ilha passou a ser quinzenal, depois mensal. Era a ruína da precária economia cubana, começou a faltar de tudo na ilha.
Fidel sentiu necessidade de pedir desculpas ao Kremlin. A oportunidade veio em 1968, com a crise da antiga Tchecoslováquia. Foi o primeiro chefe de Estado comunista a ir a Moscou levando seu apoio à intervenção das forças do Pacto de Varsóvia que esmagaram a decantada Primavera de Praga. A ilha voltou a ser abastecida com o petróleo soviético.
O episódio comporta contraditórias explicações. Jogada de mestre de um chefe de governo diante de um desafio truculento vindo do exterior? Ou oportunismo velhaco de um político que traía os fundamentos da luta a favor de um povo? Na ocasião, a quem ele poderia pedir ajuda? Aos Estados Unidos?

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O "pop star" se aposenta - Clóvis Rossi

Por Fidel Castro ser o mais longevo dos governantes do planeta, tudo o que se poderia dizer sobre ele já foi dito, de bom ou de ruim. De ditador a "benefactor", de herói a bandido, com todos os matizes intermediários, todos os rótulos já lhe foram aplicados. Resta-me uma perplexidade: como o líder de uma pequena ilha, praticante de um modelo que caiu em desuso, conseguiu manter-se, ainda assim, como um "pop star"? Conto o episódio que me aguçou essa perplexidade. Em 1997, comemorava-se, em Genebra, o 50º aniversário do Gatt (o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, substituído pela Organização Mundial do Comércio). A Genebra acudiram os suspeitos de sempre: chefes de Estado e de governo, autoridades dos mais diversos calibres, diplomatas em cachos e os indefectíveis seguranças, "aspones" e jornalistas que acompanhamos esse tipo de circo (sem nenhum desrespeito ao circo de verdade ou ao circo do "grand monde" planetário). Os suspeitos de sempre proferiram os discursos de sempre, enquanto a maior parte da "asponeria", dos jornalistas e dos funcionários não tão graduados ficávamos na cafeteria no subsolo do Palácio das Nações. Ninguém prestava atenção à discurseira, até que o mestre de cerimônias anuncia Fidel Alejandro Castro Ruz. O bruaaá das conversas é suplantado pelo arrastar de cadeiras na direção dos telões que transmitiam a cerimônia. Feito o silêncio, na cafeteria e um andar acima, Fidel Castro abre o discurso com "la vida es sueño, y los sueños, sueños son", um Calderón de la Barca que parecia profano naquele ambiente. Ao terminar, uma chuva de aplausos, inclusive de seus pares, 101% dos quais não tinham nem nunca tiveram nenhum parentesco e/ou simpatia com o comunismo. Difícil entender o que aconteceu ali.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

"Como es mala Maria de Fátima" - Luis Fernando Veríssimo

Uma vez fui a uma feira de livros em Miami e acabei num jantar para os convidados latino-americanos, oferecido pela comunidade hispânica da cidade. Arroz com pollo. O único outro brasileiros no jantar era o Milton Hatoum. O amazonense Milton não só falava um espanhol perfeito como - o mais surpreendente e humilhante para mim, que como gaúcho me considerava um quase-platino com pleno domínio do espanhol, que se não era minha língua-mãe, era certamente uma língua-tia - compreendia tudo que os outros falavam. Eu não compreendia nada. Ou apenas o suficiente para notar que o assunto principal dos presentes era Cuba, de onde a maioria era natural. Pareciam falar com uma mistura de nostalgia e rancor, mas foi só uma impressão que não confirmei com o Milton. O que me espantou foi minha incapacidade de entendê-los. Não falar o espanhol não era nada, eu também mal falo português. Mas, durante todo o jantar, só entender "más arroz?" e pouca coisa mais era desconcertante. Eu estaria bloqueando o que ouvia? Me sentindo tão deslocado, ali, que me recusava a entender o que diziam? O espanhol da Espanha não é o mesmo falado nas Américas e o espanhol (por exemplo) argentino não é igual ao mexicano. Cada fala espanhola seguiu seu curso a partir da vertente comum, mas aquele espanhol dos exilados cubanos era de uma estranheza extrema, ao menos aos meus ouvidos. Era como uma língua que tivesse se deteriorado ao ponto de virar outra, só compreensível pelos seus usuários. E pelo Hatoum. Me ocorreu que na apreciação do que aconteceu em Cuba depois da revolução do Fidel as opiniões tinham se diversificado tanto que pareciam línguas diferentes. A narrativa inicial da revolução fora num espanhol puro, que ninguém discutia: um governo tirano e corrupto derrubado por jovens idealistas dispostos a fazer uma sociedade limpa e justa. Uma narrativa clássica. Mas com seus primeiro atos Fidel e seus companheiros começaram a divisão das línguas, que foram se distanciando com o tempo e hoje são idiomas estanques: o dos que nunca perderam a admiração pela experiência cubana, o dos que se desiludiram um pouco ou completamente e o dos que não perdoam o que Fidel fez, com Cuba e com eles. Cada um fala o seu espanhol e não entende o do outro. Entre eles nenhum consenso é possível, com ou sem "arroz com pollo". M i a m i foi o mais perto que já cheguei de Cuba mas minha filha Fernanda esteve lá, há alguns anos. Numa festa, conheceu o irmão mais velho de Fidel, Ramon, que foi muito simpático. Conversaram sobre a novela brasileira que fazia sucesso na TV cubana, na época, e Dom Ramon disse que daria qualquer coisa para saber como terminava "Vale tudo". E comentou: "Como es mala Maria de Fátima!". Os dois não tiveram problema de língua. Falavam Globo.

CPI natimorta - CARLOS HEITOR CONY

O que se pode esperar de uma comissão que vai apurar mais de 11 mil casos de uso indevido dos cartões corporativos? A mídia deitará e rolará em cima do novo escândalo. Está treinada em investigar as irregularidades do poder, cumpre o seu papel com entusiasmo, acreditando que colabora para a formação de um Estado ideal e de uma sociedade perfeita.
É evidente que os gastos corporativos revelam uma frouxidão moral e um abuso funcional de tantas autoridades em diversos escalões. Tivemos CPIs bem mais importantes, como a do mensalão, que só chegará a resultados em 2009 ou 2011, quando alguns dos crimes estarão prescritos. Isso sem falar na CPI que não houve para apurar a compra dos votos que deram o segundo mandato a FHC.
Como já acentuei em crônica anterior, se houver mesmo uma CPI para os cartões corporativos, ela será uma natimorta. Dependerá de documentos, pareceres e processos do próprio governo. De nada adiantará o recibo do botequim que vendeu uma empada de camarão ao segurança de um ministro e foi paga com o cartão corporativo. Para explicar a compra da empada, o ministério em causa citará um cipoal de decretos e portarias que dão condição legal ao mata-fome de seu servidor.
Um cronista de outros tempos diria que esse exemplo é "mofino". Afinal, as despesas com os cartões não ficaram em botequins. Somam alguns milhares de reais, nem todas tiveram a nobre função de matar a fome de um segurança da nação.
Seis anos atrás, parei num posto de gasolina na estrada que vai de Paris a Lyon. Uma Mercedes suntuosa também se abastecia, estava a serviço da mulher de um ministro do nosso governo. Sabendo que eu era brasileiro, ela se ofereceu para pagar a minha despesa com o seu cartão corporativo.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

As estrelas brilham, os homens sofrem - RUBEM ALVES

RETORNAMOS ÀS ETERNAS estrelas do céu e aos efêmeros jardins da Terra... Os que olham para as estrelas dizem possuir a verdade. Mas os que olham para os jardins sabem que tudo o que sabem é provisório.
Os olhos da Igreja Católica não vêem jardins; só vêem as estrelas. E é do seu olhar para as estrelas imóveis que ela deseja governar a Terra. Já os jardineiros sabem que há muitos jardins diferentes, nenhum deles é verdadeiro, mas todos são belos...
Todos os que pretendem possuir a verdade estão condenados a serem inquisidores. Para explicar esse ponto vou transcrever um pequeno trecho do filósofo polonês Leszek Kolakowski que tem o título "Em louvor à inconsistência".
"Falo de consistência em apenas um sentido, limitado à correspondência entre o comportamento e o pensamento. Assim, considero como consistente um homem que, possuindo um certo número de conceitos gerais e absolutos, esforça-se honestamente em tudo o que faz, em todas as suas opiniões sobre o que deve ser feito, para manter-se na maior concordância possível com aqueles conceitos. Por que deveria qualquer pessoa, inflexivelmente convencida da verdade exclusiva dos seus conceitos relativos a qualquer e a todas as questões, estar pronta a tolerar idéias opostas? Que bem pode ela esperar de uma situação em que cada um é livre para expressar opiniões que, segundo seu julgamento, são patentemente falsas e portanto prejudiciais à sociedade? Por que direito deveria ela abster-se de usar quaisquer meios para atingir o alvo que julga correto? Em outras palavras: consistência total equivale, na prática, ao fanatismo, enquanto a inconsistência é a fonte da tolerância..."
O SS Bento 16 acredita que Deus revelou à Igreja Católica e somente a ela a verdade total das estrelas. Segue-se, por necessidade lógica, que todos os homens, indivíduos ou igrejas, que têm idéias diferentes das suas, estão privados da verdade. O que torna sem sentido os esforços ecumênicos de aproximação entre as igrejas. O ecumenismo é baseado na crença de que Deus, jardineiro supremo, planta muitos jardins diferentes... Mas quem só olha para as estrelas não pode se deleitar na variedade dos jardins. A Igreja Católica, mãe e mestra de todos, nada tem a aprender.
Segue-se a conclusão ética: compete aos homens encarnar na Terra a verdade eterna das estrelas. Aquilo que deve ser feito é decidido não pela análise da situação qual o comportamento que traria o bem maior ao maior número de pessoas, mas pela imitação da perfeição divina.
A Igreja tem horror à experiência. Experiência é conhecimento que cresce da terra como as plantas. E ela contesta a verdade das estrelas. Roger Bacon, precursor da ciência moderna, por haver afirmado que o conhecimento vem pela experiência, amargou 15 anos na prisão. E a luneta de Galileu quase o levou à fogueira...
Assim, as difíceis questões que a experiência moderna coloca, a AIDS, a camisinha, o aborto, o divórcio, a inseminação artificial, o uso de células-tronco, a ortotanasia, são como se não existissem. Indiferentes ao sofrimento dos homens, as estrelas decretam: é pecado abortar um feto sem cérebro, a despeito da inutilidade da gravidez e do sofrimento dos pais... As estrelas brilham no céu. Os homens sofrem na Terra.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Brigas entre irmãos - Rosely Sayão

Irmãos brigam, disputam, rivalizam, competem e se estranham com freqüência e as relações entre eles são, para muitos pais, motivos de preocupação. Parece que hoje, mais do que nunca, os pais querem fazer de tudo para que os filhos se dêem bem.
Dá para entender os motivos desses pais que almejam que seus filhos se amem e sejam companheiros. No contexto em que vivemos, com laços afetivos tão frágeis, a aliança entre irmãos parece ser a única que promete durar por toda a vida -e poderia ser, portanto, antídoto contra a solidão.
Por esse motivo, sempre que os irmãos brigam, os pais padecem. Eles esperam que, desde sempre, os filhos compartilhem tudo, cedam a vez com tranqüilidade, sejam solidários. Acontece que nada disso é natural -tudo precisa ser experimentado e aprendido.
Não é fácil para uma criança repartir, com os irmãos, o amor e a atenção de seus pais. Quando nasce, o bebê tem dedicação quase integral dos pais e logo percebe o quanto isso é bom. Ser o centro da vida dos pais é muito prazeroso e leva a um sentimento de posse. E perceber que é preciso compartilhar esse lugar com outros na mesma condição já não é tão bom. É por isso que, entre irmãos, sempre há ciúme e outras emoções hostis que levam a brigas, que são normais e saudáveis.
Nem sempre os pais aceitam e enfrentam tal fato com tranqüilidade. Hoje é muito mais comum os pais interferirem precocemente nessas desavenças. Mas é bom saber que isso pode ser um problema. Em primeiro lugar, porque interferir sem tomar partido é bem difícil, não é verdade? Em segundo lugar, porque o objeto da briga é, quase sempre, irrelevante e banal. O que está em jogo é mesmo o ciúme entre os irmãos, e isso sinaliza uma única coisa: que ambos amam seus pais e desejam ter o amor deles exclusivamente para si. Em terceiro lugar, porque as reações dos pais diante das brigas podem provocar o oposto do que eles gostariam: ressentimentos entre os irmãos.
Isso não significa que os pais devam se abster de qualquer interferência. Eles precisam, sim, intervir, sempre que a briga se tornar violenta -em palavras ou em atos. Os pais precisam é ensinar aos filhos que eles devem se respeitar. O amor fraterno pode surgir depois dessa aprendizagem.
A ação dos pais que observam as brigas entre seus filhos e só intervêm quando eles perdem o controle e o respeito possibilita que os mais novos aprendam que é possível expressar os conflitos sem medo de destruir o outro. Eles aprendem também a buscar saídas para seus enfrentamentos, ou seja, a negociar, a ceder e a conhecer seus próprios limites e os do outro. Isso não deixa de ser uma educação afetiva.
Para tanto, os pais precisam não se desesperar com as brigas, porque isso pode apontar que os irmãos são perigosos um para o outro. E isso pode colaborar para que, de fato, eles assim se tornem. O mais importante para os pais é que eles saibam que a relação entre os filhos pode mudar a qualquer momento e que as brigas fazem barulho, mas são intercaladas por bons momentos de convivência.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

É duro ser judeu - MOACYR SCLIAR

Ladrão finge ser judeu ortodoxo, mas é preso. A tentativa de Reinaldo Rodrigues, 30, de se passar por um judeu ortodoxo não durou mais do que cinco minutos. Após roubar R$ 15 mil em dinheiro, relógios, telefones e equipamentos eletrônicos da casa de um rabino, o bandido apropriou-se de um chapéu da vítima e, achando-se com cara de judeu, tentou fugir. Foi preso em flagrante pelo sargento da Polícia Militar André Mario Destro. O sargento Destro notou que o homem do chapéu usava um terno claro -religiosos judeus usam vestimentas escuras-, não tinha barba nem peiót -cachinhos ao lado das orelhas. O PM apontou para a imagem de um candelabro de sete velas que aparecia em uma moeda encontrada em poder do ladrão. Perguntou qual o nome da peça. Rodrigues ficou mudo. "Eu disse: isso aqui é uma menorá, um dos símbolos mais fortes do judaísmo." Segundo o PM, o ladrão, que portava um revólver de brinquedo, confessou o crime. Cotidiano, 13 de fevereiro de 2008

PIOR QUE UM FRACASSO , foi uma humilhação. A tentativa de passar por rabino resultara num fiasco, e em deboche por parte dos policiais e de outros presos. De modo que, tão logo cumpriu a pena, decidiu dar a volta por cima. Mostraria que podia, sim, desempenhar aquele papel. Mais: ganharia dinheiro com isso. Durante as longas noites de cadeia elaborara um cuidadoso plano. Não apenas passaria por judeu, como se intitularia chefe de uma seita judaica por ele próprio fundada. Com o dinheiro dos fiéis, faria fortuna.
Para isto, naturalmente, teria de adquirir os conhecimentos cuja falta o levara à prisão. Mas sabia como fazê-lo: procurou um velho judeu, que não sabia de sua história, disse que pretendia se converter e que por isso precisava aprender mais sobre o judaísmo. O ancião ficou surpreso, e sua primeira reação foi a de recusar: o rapaz deveria recorrer a alguém mais autorizado. Ele insistiu: sei que o senhor é um homem culto, um sábio e é com o senhor que quero aprender sobre judaísmo. O homem acabou concordando, e no dia seguinte começaram as aulas.
E havia muito o que aprender. Muito mais do que ele imaginava.
Para começar, toda a história do povo judeu, uma longa história, às vezes gloriosa, às vezes dolorosa, às vezes gloriosa e dolorosa ao mesmo tempo: os guetos, as perseguições, os massacres... Depois, os livros sagrados, a Bíblia, o Talmude. Ah, sim, e as prescrições religiosas: as orações, os alimentos que podia e não podia comer. Suspirou quando se deu conta de que carne suína, daí por diante, seria apenas uma lembrança -o que, para quem adorava um lombinho, era um sacrifício não pequeno.
"É duro ser judeu", dizia o mestre, e ele tinha de concordar. Mas era um cara teimoso; agora que começara, iria até o fim.
E ao fim ele chegou, meses depois. O velho e improvisado professor disse que nada mais tinha a ensinar e que o jovem, graças a seu esforço, se saíra muito bem. Sim, se ele quisesse, poderia se converter. "Só falta a circuncisão", disse.
A circuncisão. Como podia ter esquecido aquilo? Claro, a circuncisão era essencial: caso contrário, da primeira vez que ele estivesse com um fiel no mictório a farsa seria descoberta.
Mas era demais. Circuncisão? Para ele, demais. De modo que desistiu do plano. Está pensando em outras coisas. Arranjar um cartão corporativo, por exemplo.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

A importância do faz-de-conta na vida da criança – Rosely Sayão

Às vezes, damos pequena importância às questões que fazem parte do universo dos filhos, sejam estes crianças ou adolescentes. Para os menores de seis anos, por exemplo, o mundo do faz-de-conta é fundamental - imprescindível, eu diria - para que eles tenham oportunidade de viver da melhor maneira possível essa fase da vida.

Muitos pais não estimulam os filhos a acreditarem nos mitos da infância, evitam contar histórias que têm personagens ou idéias que consideram inoportunas ou violentas – morte, perda, lutas etc - e até insistem em tentar convencer o filho de que isto ou aquilo não existe. É uma pena esse tipo de atitude já que, sem poder usar o recurso do mundo do faz-de-conta, o que resta às crianças é habitar o mundo adulto.

A primeira infância é tão curta, não é verdade? São apenas cinco ou seis anos em que a criança pode acreditar em fadas e príncipes, pode resolver seus conflitos e problemas à moda dos super-heróis, ser menino e menina ou criança e gente grande ao mesmo tempo, simular que vive como quer ou gostaria de viver.

É graças ao seu mundo imaginário que a criança elabora condições para enfrentar suas angústias e, principalmente, é a convicção de que tudo isso existe é que permite que ela confie que seus pais são onipotentes e, portanto, podem resolver qualquer problema em sua vida. Em resumo: a existência desse mundo é a garantia de segurança para a criança, além de tudo o mais.

A mãe de um menino de cinco anos contou um fato muito interessante a esse respeito. O garoto, ao conversar com a mãe e fazer referência a um personagem do mundo da imaginação, para identificar sobre o que falava, explicou: “Aquele, que vive nesse mundo que vocês não acreditam que existe”. E continuou: “nesse mundo em que a garotinha - que ele conhecia e que morrera recentemente – ainda vive”.

A fala desse menino mostra o quanto é vital para ele contar com o mundo do faz-de-conta. Num tempo em que a separação entre infância, adolescência e vida adulta é tão tênue, garantir isso à criança pode fazer a diferença para seu desenvolvimento saudável.

As palavras e o silêncio - MOACYR SCLIAR

Os últimos diálogos: 18:48:34 Co-piloto: "Desacelera, desacelera!" 18:48:40 Piloto: "Não dá, não dá... Ai, meu Deus!" Cotidiano, 2 de agosto de 2007

DESDE CRIANÇA tinha um sonho: queria ser escritor, autor de livros como aqueles que lia (lia, não: devorava) na escola: as obras de José de Alencar, de Machado de Assis, de Graciliano Ramos. Muito cedo começou a rabiscar historinhas que mostrava com orgulho para os professores e para os pais. Todos o encorajavam, diziam que deveria prosseguir, que tinha muito talento. Mas disso ele próprio duvidava. A verdade é que se sentia muito distante dos grandes mestres.
Não tinha fôlego, parecia-lhe, para escrever uma obra como as de Shakespeare, autor que admirava, embora nem sempre o entendesse. Uma constatação que o deixava deprimido. E mais deprimido ficou quando, a conselho dos pais e dos amigos, começou a estudar letras.
Quanto mais autores famosos conhecia, mais se envergonhava de seu próprio trabalho, coisa de simplório amador. Os seus diálogos, por exemplo, eram fracos, banais, nada que chegasse aos pés dos diálogos escritos por Shakespeare, diálogos que traduziam todos os dramas que as pessoas podem viver.
Um dia, e de repente, ocorreu-lhe uma resposta. Um grande tema, era isso o que lhe faltava. Um tema que pudesse ser expresso através de diálogos fortes, transcendentes. Mas que tema poderia ser esse? Na sua própria vida nada acontecia que o motivasse. Era uma vida tranqüila, sem grandes problemas.
Os pais, ele, advogado, ela, médica, não eram ricos, mas podiam sustentá-lo confortavelmente. Moravam numa boa casa, onde ele tinha seu quarto, sua tevê, seu computador.
Nunca passara fome, nem ele nem a irmã mais velha, que aliás era a companheira, a confidente com quem podia contar sempre. Nunca tivera doenças graves, era um jovem atlético (jogava basquete), simpático. Namoradas estavam ao seu alcance à hora que quisesse.
Grandes escritores muitas vezes são pessoas atormentadas, angustiadas. Não era seu caso. E por essa razão, era o que achava, não tinha sobre o que escrever. Faltava-lhe uma tragédia. Então ocorreu o acidente aéreo.
Medonha catástrofe, dezenas de vítimas. Olhando a tevê, ele, como tantos outros, chorou de emoção. Ocorreu-lhe escrever uma história a respeito. Uma história que retratasse a agonia humana numa tragédia como aquela e que a expressasse por meio de diálogos: entre os passageiros, entre os pilotos.
Sem demora, sentou-se ao computador. Mas aí viu, sobre a mesa, o jornal daquele dia, com a transcrição dos últimos diálogos gravados na caixa preta. Ele os leu, ou melhor, releu. Eram palavras simples aquelas, palavras que poderiam fazer parte do cotidiano de qualquer pessoa, mesmo que essa pessoa não escrevesse: ""Desacelera, desacelera!", "Não dá, não dá... Ai, meu Deus!"
Desligou o computador. Nada mais havia a ser dito ou escrito. Nesse momento ocorreram-lhe as palavras daquele distante autor inglês, Shakespeare: o resto é silêncio.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Magnífico, reitor! - Zuenir Ventura

Se os estudantes ainda tivessem força - ah, se a UNE fosse o que era há 40 anos! -- esse reitor de Brasília não permaneceria no cargo nem uma semana depois daquela espécie de aula magna de sábado no Jornal Nacional. Uma obra prima de cinismo, mesmo considerando o festival de desculpas esfarrapadas que vem assolando o país ultimamente, cada uma melhor do que a outra. Basta lembrar a do ministro da Pesca, que alegou ter gasto R$ 512,60 numa churrascaria de Brasília por causa de uma delegação chinesa (chinês come muito) e R$ 222,85 no Rio, na Quarta-Feira de Cinzas, com o seu colega norueguês que veio ver a Imperatriz desfilar (bacalhau foi o tema do desfile, não se sabe se do almoço também). O magnífico começou contestando os R$ 475 mil que, de acordo com o Ministério Público, ele teria gasto na decoração do apartamento. Um exagero. Os custos foram de R$ 350 mil, afirmou, e assim afastou a suspeita de um grande absurdo. Não houve nada demais. O que são R$ 350 mil? Vai ver que tem professor ganhando isso por ano. Afinal, como argumentou, não é apenas um apartamento para ele morar, é também um local de "encontro com professores, cientistas e delegações estrangeiras".
Não precisou acrescentar que essa gente é muito exigente. Professor então! Está acostumado com luxo. Eles não aceitam fazer reunião em qualquer lugar e de qualquer jeito. Fico imaginando o reitor convocando-os para um encontro e tendo que ouvir: "Tudo bem, magnífico, mas só se o saca-rolha for de R$ 859 e o abridor de latas de R$ 159. Outra coisa, magnífico, só jogamos lixo em lata inoxidável de R$ 1 mil. E no mínimo três, porque, enquanto discutimos, jogamos muito papel fora". Em tom professoral como convém a um reitor, Timothy Mulholand, aproveitou para ensinar que, além da necessidade de material durável, "não se mobilia uma casa de qualquer maneira, tem linhas de estética para poder ter um conjunto harmonioso". Ele tem razão, estética não é como ética, que não precisa de linhas nem de regras. Estética é fogo. Além do mais, foi tudo bancado pela Finatec, a fundação que nos últimos seis anos recebeu R$ 23 milhões da Universidade de Brasília. O melhor o magnífico guardou para o final da aula. Pressionado pelas evidências, achei que ele teria um surto de sinceridade e daria ao repórter a única explicação séria, aceitável: "e como é que eu podia adivinhar que iam descobrir?" Em vez disso, ele encerrou a sua aula assim: "Na há nenhum problema ético envolvendo. Nem legal, nem ético. Aquilo foi feito propositadamente com a finalidade institucional". Se criassem o Prêmio Óleo de Peroba para os maiores caras de pau do escândalo dos cartões corporativos, o reitor de Brasília seria forte candidato.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Uma viagem inesquecível - FERREIRA GULLAR

O AVIÃO é o mais seguro dos meios de transportes, dizem, e eu admito, embora prefira viajar de automóvel.

É um problema psicológico, sem dúvida, mas que posso fazer? Quando o carro balança ou estremece, não me aflijo, pois sei que, estando no chão, não vai cair; mas, no avião, a 10 mil metros de altura, entro em pânico. Sei que não cai, mas não adianta sabê-lo -entro em pânico assim mesmo.
Fazia quase três anos que não viajava de avião, negando-me a aceitar qualquer convite que me obrigasse a isso. E tudo por causa de dois sustos seguidos, na ponte-aérea Rio-São Paulo. O primeiro deles, vinha para o Rio de noite e, pouco antes de chegarmos, o avião deu uma balançada tão brusca que fez gente gritar assustada; a impressão era de que íamos nos precipitar no chão, mas não aconteceu nada; quando o avião pousou, os passageiros bateram palmas, não sei se ao comandante ou à providência divina. Mas, recuperado do susto, desci as escadas do avião e senti pena do pessoal que, em fila, esperava para embarcar. Aliviava-me pensar que, só dali a um mês, teria que repetir aquela viagem.
Sucede que, para os assustados, um mês passa rápido, e assim foi que, quando dei por mim, estava de novo voando para São Paulo. Com 15 minutos de vôo, o comandante informou que o aeroporto de Congonhas estava fechado e assim me vi rodando sob a tempestade durante 20 minutos antes de conseguir pousar. Salvo do desastre, prometi a mim mesmo que nunca mais poria o pé dentro de um avião. Desde aquele dia, todas as vezes que viajei para São Paulo fui de carro e me dei bem. O chofer apanhava-me à porta de casa e me deixava à porta do hotel. Além de viajar com a alma em paz, não tinha que enfrentar as filas e atrasos nos aeroportos. Cinco horas e meia de carro permitiam-me ler e escrever. Até um livro de poemas para crianças escrevi numa dessas viagens.
Anos se passaram, esqueci aqueles sustos e, talvez por isso, aceitei o convite para ir à Espanha fazer conferências e leituras de poemas. Isso foi bem antes da tragédia de Congonhas. Cláudia, que gosta de viajar e não tem medo de avião, achou ótimo e, assim, irresponsavelmente, deixei-me encantar pela possibilidade de rever Madri e, finalmente, conhecer Sevilha e Santiago de Compostela. Além do mais, ficaríamos na Residencia de los Estudiantes, onde residiram García Lorca, Juan Ramón Jiménez e Rafael Alberti. Embalado em sonhos, vi aproximar-se a data em que voaria para terras da Espanha. É certo que, em alguns momentos, acudia-me a pergunta: "E você vai estar dentro de um avião durante dez horas ininterruptas?". Estremecia de medo, mas desviava o pensamento, já que, àquela altura, não poderia voltar atrás.
E foi assim que, certa tarde de maio, Cláudia e eu, arrastando maletas, chegamos ao Aeroporto Internacional Tom Jobim: embarcaríamos às 21h30. Logo nos deparamos com uma fila enorme de passageiros que tomariam o mesmo avião. Sem muita demora, o alto-falante anunciou que o nosso vôo para Madri atrasaria cerca de uma hora.
Começou a encrenca, disse a mim mesmo, e seguimos para o restaurante a fim de gastarmos o tempo. Estava lotado mas, por sorte, logo conseguimos sentar. E ali ficamos, à espera da chamada para o embarque, cujo atraso já se aproximava das duas horas. "Para que me meti nisto?", me perguntava eu, já dentro do avião, que não se movia. Finalmente, uma voz informou, em espanhol, que deveríamos esperar mais uma hora, aguardando autorização das autoridades brasileiras.
Afinal, decolamos. Meu relógio marcava meia-noite e meia, três horas de atraso. Agora, devíamos subir pela costa brasileira, cruzar o Atlântico, passar pelo norte da África, transpor o Mediterrâneo e chegar a Madri. Após o jantar, as luzes do avião se apagaram e iniciou-se a mais longa noite de minha vida, dentro de uma espécie de torpedo voador que estremecia a cada instante. Das dez horas de viagem, seis foram de turbulências. Afinal, o avião pousou e eu, zonzo de sono, fui esperar pelas bagagens.
Os dias que se seguiram foram confortadores e inesquecíveis. Ganhamos novos amigos, tanto espanhóis como brasileiros, que nos fizeram olhar a Espanha de uma nova maneira. Só que, de vez em quando, num relance, dizia a mim mesmo: "O diabo é ter que entrar naquele avião rumo aos caos aéreo brasileiro". E eu ainda não conhecia a opinião do presidente da Infraero: "Avião que não cai é o que está no chão". Pois é, no chão ficarei.