PARA MIM é fácil reconstruir o mundo pelos cheiros; já pelos sons, tenho mais dificuldade. Estou com saudade de Paraty e me dei ao luxo de ficar lembrando do acordar sossegado, sem despertador, uma vassoura raspando a terra dura e a pedra do terraço. Como fundo, a cachoeira que não pára nunca, o grito agudo de uns pássaros matutinos e uma cortina impenetrável de zumbido de insetos.
Mais longe, a lenha crepitando. Mais perto, o acendedor de gás, umas tampas de panela desmontando, o leite fervendo na panela.
A casa é de madeira, e os sons atravessam as frestas como as andorinhas das cornijas. Um cachorro se coça na porta da cozinha e sai guinchando com um grito abafado de alguém. As galinhas e os galos se lixam para os que dormem e põem a boca no mundo, anunciando o dia e o ovo.
A geladeira tem um zumbido peculiar, a torneira pinga e, de repente, o telefone toca, o coração dispara, deve ser o namorado da menina. É esse barulho de telefone que começa a nos preparar para os aviões que passam baixo e os helicópteros das férias.
O espremedor de laranja só pára de zoar quando acabam as laranjas e as mexericas. E então se escuta o capim sendo ceifado, uma ou outra conversa de cavalos e de burros, abelhas, grilos, cigarras.
A mesa de café está sendo posta, os passos descalços vão daqui para lá com as xícaras e os pires. Na televisão, em São Paulo, de vez em quando aparecem as vinhetas para surdos. Qualquer barulho difícil -e quase todos os barulhos são difíceis de traduzir- eles escrevem "borborinho" (sic). Complicado, para os surdos, carros que passam, pessoas que conversam, fuga do lugar do crime, seis mulheres conversando, é tudo "borborinho".
Fico pensando se o sítio também não tem sons muito destacáveis, difíceis de serem separados uns dos outros, é só um burburinho que não atrapalha ninguém. Dá para entender a água fervendo que explica o café, a máquina de moer os grãos ajudando na interpretação. Somos a audiência, os atores, os compositores nesta sinfonia doméstica doce e ritmada que não tem fim.
Os sons da natureza são harmoniosos, a chuva, quando cai num escândalo, dá medo, mas não é feia de se escutar, tem lá sua dignidade. Mas uma música a toda altura dentro de um barco no mar muito calmo e azul dá tontura. Quem sabe deveria haver uma faculdade que nos ensinasse a arquitetar os sons de uma cidade?
E ainda vai ter mão de pilão socando alho, faca afiando na pedra, feijão sendo catado, o processador virando as torradas em farinha de rosca, o bife chiando na frigideira, a casca do ovo se quebrando na tigela, o ovo sendo batido, a torneira pingando, a taioba batida com o facão e a tábua da salsa e cebolinha soando desequilibrada sobre a pia.
A banana vai fritar na manteiga para a torta, a porta do forno quebrada vai bater com força, se Deus quiser vai ter nhoct, ploct de jabuticaba, coco verde cortado para beber a água, o estalar da mordida da maçã, a melancia pesada rolando pelo chão, o som certeiro do facão eliminando a coroa do abacaxi, o tchiiii do frango grudando na panela, a massa do pão sovado, a prateada escamação do peixe, o estalo da ostra, um sugar humano de perninha de siri, outro de chupar caroço de manga, a salsicha boa que estala ao ser mordida, o tloc-tsssss da lata de Coca.
A banana não faz barulho, descasca baixinho, mas o doce se arrebenta em bolhas. É bom, assim. Tem algumas religiões que procuram o silêncio e será que conseguem?
Podíamos falar menos, evitar aquela gritaria histérica de propaganda tipo Casas Bahia, sorteio de barra de ouro, os oops de Big Brothers desassuntados, mas, não sei não, le silence éternel de ces espaces infinis m'éffraie.
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