domingo, 29 de abril de 2007

PROCURA-SE PATROA COM EXPERIÊNCIA - MARIO PRATA

DEPOIS DESTE escandaloso crime, onde uma patroa matou o filho a porradas e foi corajosamente denunciada pela empregada, que ainda tentou salvar o garotinho, acho que devemos rever a contratação de tal serviçal. Seria mais ou menos assim:
A patroa vai humildemente até a casa da futura empregada, bate na porta e é recebida

Empregada - A senhora tem experiência? Há quanto tempo é patroa?
Patroa - Desde mocinha, aprendi com a minha mãe.
Empregada - Quanto tempo a senhora ficou com a última empregada?
Patroa - Mais de cinco anos. Mas eu casei, engravidei...
Empregada - Sei, sei... Quantos filhos a senhora tem?
Patroa - Três.
Empregada - Pretende ter mais?
Patroa - Não, não. Pode ficar sossegada.
Empregada - A senhora cozinha bem, mantém a casa limpinha?
Patroa - Um primor.
Empregada - A senhora costuma tirar férias quantas vezes por ano?
Patroa - Aí depende do meu marido.
Empregada - Pois comigo vai ser apenas 20 dias corridos por ano.
Patroa - Para mim está bem.
Empregada - Outra coisa. A senhora costuma dormir fora, chegar tarde?
Patroa - Uma vez ou outra. Fim de semana, né?
Empregada - Pois comigo vai ter apenas uma tarde de domingo livre a cada quinze dias.
Patroa - Sim, senhora.
Empregada - Não quero que receba visitas no quarto. Quando vier alguém, um parente, por exemplo, receba a pessoa no portãozinho. Do lado de fora.
Patroa - Claro.
Empregada - Não quero saber de namoros no telefone, e interurbano, nem pensar, está claro?
Patroa - Sim, senhora.
Empregada - A senhora tem uniforme de patroa? Está novo, não tem remendos?
Patroa - Novinho em folha.
Empregada - Ótimo. No período que estivermos trabalhando juntas, nada de engravidar. Nada de namorar PMs e jogadores de futebol.
Patroa - Claro.
Empregada - O INPS corre por conta da senhora. Não tem nem décimo-terceiro e nem férias pagas. A senhora trate de economizar.
Patroa - Não gasto quase nada, dona.
Empregada - Você é católica?
Patroa - Praticante.
Empregada - Pois eu sou da Igreja Universal do Reino de Deus. É melhor a senhora se converter, para evitar discussões.
Patroa - Claro, sempre gostei muito do bispo Macedo.
Empregada - Quando eu sair, de noite, você fica com as crianças, e nada de bater com a cabecinha deles nos ladrilhos, viu?
Patroa - De jeito nenhum. Adoro criancinhas.
Empregada - Ótimo. Vamos nos dar bem. E quando eu voltar, quero a casa toda arrumada e a comida no forno.
Patroa - Temos microondas.
Empregada - Ótimo. O seu marido faz o quê?
Patroa - É médico.
Empregada - Quanto ele está cobrando a consulta?
Patroa - Cem dólares.
Empregada - E quanto vai ser o meu salário?
Patroa - Um salário mínimo. Mais ou menos sessenta dólares.
Empregada - Quer dizer que o seu marido ganha cem dólares por hora e a senhora quer me pagar sessenta dólares por mês?
Patroa - Mais comida, casa e roupa lavada. É pegar ou largar.
A empregada abre a porta para a patroa ir embora. Coloca a cabeça para fora:
Empregada - Por favor, a próxima.

terça-feira, 24 de abril de 2007

O sexo e a pulseira eletrônica - MOACYR SCLIAR

Reino Unido quer controlar idosos com pulseiras eletrônicas. O ministro britânico da Ciência, Malcolm Wicks, quer obrigar todos os idosos do Reino Unido a usarem uma pulseira magnética para localizá-los a qualquer hora. De acordo com o ministro, uma nova tecnologia via satélite permite que as famílias saibam onde seus parentes estão. Em uma entrevista ao jornal inglês "Daily Mirror", Wicks afirmou que a iniciativa foi lançada como conseqüência das preocupações de muitos britânicos sobre o paradeiro dos idosos e sobre sua segurança.
Folha Online

D EPOIS DE muitas discussões, o uso da pulseira eletrônica como localizador de pessoas idosas foi afinal instituído por lei. Não se tratava de medida impositiva: os idosos poderiam tomar uma decisão a respeito, depois de consultar seus familiares e seus médicos. Ao final de alguns meses, a maioria optou pela pulseira. Às vezes em meio a discussões e controvérsias. Foi o caso de um casal que já tinha celebrado o qüinquagésimo aniversário de matrimônio. Celebrado é modo de dizer, porque, na verdade não viviam muito bem. Sobretudo por causa do homem, que tinha um gênio muito difícil, e que se queixava amargamente da mulher. Não foi diferente quando ela propôs que ambos adotassem a pulseira eletrônica. Ele, particularmente, precisava desse dispositivo porque não raro ficava desorientado; mas, justamente porque a proposta partia da esposa, ele de início a recusou. Disse que a pulseira na verdade era uma algema, que a mulher queria controlá-lo, queria prendê-lo. Essa era apenas uma das queixas que tinha em relação à esposa. Temperamento fogoso, sentia-se em condições de praticar sexo quase da mesma forma com que o fizera na juventude. Ela, porém, não partilhava desse ardor. Daí as brigas. Curiosamente, a pulseira proporcionou uma solução para o problema. Finalmente ele concordou em usá-la e aí, a partir de um sistema de satélite, a esposa passou a rastreá-lo. O que era necessário, porque ele saía todos os dias e às vezes só voltava à noite. Agora, ela podia saber exatamente onde o esposo se encontrava. E isto resultou num choque. Ele freqüentava lugares, para ela, francamente misteriosos. De posse dos endereços, tratou de descobrir que lugares eram aqueles. Uma agência de detetives forneceu-lhe os dados. Chocantes: eram bordéis. A cada dia ele ia a um bordel diferente. E agora? O que fazer? Pensando sobre o assunto, ela acabou concluindo que, afinal, era em grande parte responsável pelo que estava acontecendo. Se tratasse o marido melhor, caso se aproximasse dele como a mulher sedutora que um dia fora, ele talvez não precisasse ir a bordéis. A partir de então, ela mudou. De alguma maneira, recuperou sua feminilidade. E hoje vivem felizes, na cama e fora dela. E o monitoramento da pulseira mostra que ele só freqüenta lugares inocentes: cafés, centros culturais. O que ela não sabe é que, na verdade, ele nunca foi a bordéis. Pagava a um antigo empregado para fazê-lo. E com isso, conseguira criar a imagem de um campeão do sexo. Pulseiras eletrônicas não são estimulantes sexuais. Mas, com um pouco de imaginação, podem perfeitamente cumprir essa função.

domingo, 22 de abril de 2007

Machismo - Carlos Heitor Cony

O machismo saiu de moda. As mulheres não usam espartilhos, os homens não usam ceroulas. Entretanto o machismo produziu, ao longo dos séculos, um arsenal de argumentos que continuam dando caldo. Relendo o filósofo Schopenhauer, espantei-me com os trechos que havia sublinhado. Transcreverei alguns. Não os endosso. São conceitos de outra época. Aí estão eles:
"O simples aspecto da mulher revela que não é destinada nem aos grandes trabalhos intelectuais ou materiais. Conservam-se a vida toda uma espécie de intermediárias entre a criança e o homem. A natureza recusando-lhes a força, deu-lhes a astúcia para lhes proteger a fraqueza: de onde resultam a instintiva velhacaria e a invencível tendência à simulação do sexo feminino".
"O leão tem os dentes e as garras. O elefante e o javali, as presas; o polvo, a titã; a cobra, o veneno. A natureza deu à mulher para se defender apenas a dissimulação. Esta faculdade supre a força que o homem tira do vigor de seus músculos e de sua inteligência".
"Os homens entre si são naturalmente indiferentes. As mulheres são, por índole, inimigas. Isso provém da rivalidade que, no homem, só se destina aos da mesma profissão. Nas mulheres, todas elas são rivais umas das outras, pois todas têm a mesma profissão e buscam o mesmo fim".
Elas são até mais aptas do que os homens para aprender o lado técnico das artes, e mais constantes e dedicadas no aprendizado. Taí, em linhas gerais, o pensamento de Schopenhauer. Discordo dele: nem o homem nem a mulher foram feitos para produzir obras definitivas no campo das artes ou do consumo mercadológico. Somos todos da mesma massa. De minha parte, folgo que haja mulheres, diferentes de mim na cabeça, no tronco e, principalmente, nos membros.

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Sobre rankings escolares - Rosely Sayão

Qual a utilidade de um ranking de escolas? Seja fundamentado no numero de alunos que passam no vestibular de determinadas faculdades ou no resultado obtido no Enem, hoje temos várias listas de classificação que destacam nos primeiros lugares algumas escolas e jogam lá para o meio ou para o final da fila tantas outras. Tais listas não têm utilidade alguma e dizem muito pouco – quase nada, para falar a verdade – sobre o valor de uma escola ou de seu modo de funcionar. Mesmo assim, elas são usadas para avaliar a qualidade de ensino praticado, seja a instituição pública ou privada.

Uma conseqüência importante que essas listas provocam, tanto para as escolas que se classificam no topo da lista quanto para as demais, tem a ver primeiramente com elas mesmas. As que se situam no topo das listas acreditam que o resultado obtido é a prova de que estão no caminho certo e que, portanto, não precisam rever seus métodos tampouco suas práticas. As demais ficam pressionadas a atingir resultados melhores e passam a procurar caminhos que lhes permitam atingir tal meta. Ora, o trabalho que uma escola realiza não pode ser reduzido ao êxito escolar de seus alunos avaliado dessa maneira.

É que a instituição escolar não funciona como uma empresa, que precisa ser eficiente a qualquer custo. Como uma estrutura social importante, ela tem finalidades bem mais preciosas que não podem ser medidas de imediato, mas só uma ou duas décadas após o aluno sair da escola. É que, além da transmissão do saber – que exige disciplina, método, precisão e rigor, por exemplo, e isso também precisa ser ensinado – a escola tem o objetivo de ensinar o exercício da cidadania e promover a construção da autonomia. E é preciso lembrar que essas atribuições não são feitas separadamente, de modo algum!

Formar o futuro cidadão supõe ensinar e praticar valores coletivos e democráticos, ensinar a viver em grupos heterogêneos, a conviver com a diversidade, a superar preconceitos e estereótipos, a não restringir a vida social apenas a grupos de interesses convenientes, a buscar o bem comum e, principalmente, a usar o saber adquirido e atualizado constantemente em benefício de todos e não apenas próprio ou de poucos. É por isso que só sabemos o efeito que uma escola provocou quando seus alunos efetivamente se tornam cidadãos.

Desse modo, pouco importa as escolas de ensino fundamental e médio que freqüentaram os alunos que entraram em determinadas faculdades, por exemplo. Isso mostra apenas que algumas escolas instruem bem seus alunos em relação a determinadas disciplinas do conhecimento e execução de tipos de provas de avaliação. Mas, e as outras atribuições?

Queremos saber algo mais significativo a respeito do trabalho de uma escola? Vamos procurar saber em que trabalham e como anda a vida profissional dos alunos que lá se formaram uma década atrás, por exemplo. Será que trabalham apenas em busca de uma vida pessoal confortável, ou querem mais do que isso? Quando vemos uma atuação indigna de um político, seria interessante saber qual escola ele freqüentou no início da vida, não é mesmo? Afinal, é na escola que se aprende a viver politicamente e é na maturidade que a formação adquirida na escola ganha oportunidade de se expressar com consistência. Mas, não nos esqueçamos da liberdade na vida adulta: por melhor que tenha sido a formação escolar básica de uma pessoa, ao ganhar autonomia ela faz suas próprias escolhas.

O fato é que são raras as escolas de ensino fundamental e médio que têm dado conta de suas três importantes funções com seus alunos e não há ranking algum que consiga ocultar esse fato e essa questão é um problema de todos nós e não apenas de quem tem filhos em idade escolar ou trabalha em escola. Afinal, nosso futuro terá as marcas desse tipo de formação.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Peça seu autor aqui

Se você ainda não encontrou nenhum conto ou crônica do seu autor preferido aqui no blog, pode pedir nesse espaço, se você quiser que sua crônica apareça no nosso espaço é só entrar em contato.

Racismo – Luis Fernando Veríssimo

Preconceito racial e discriminação racial são duas coisas diferentes.
O preconceito é um sentimento, fruto de condicionamento cultural ou de uma deformação mental, mas sempre incorrigível. Não se legisla sobre sentimentos, não se muda um habito de pensamento ou uma convicção herdada por decreto. Já a descriminação racial é o preconceito determinando atitudes, políticas, oportunidades e direitos, o convívio social e o econômico. Não se pode coagir ninguém a gostar de quem não gosta, mas qualquer sociedade democrática, para desmentir o nome, deve combater a descriminação por todos os meios – inclusive a coação.
Não concordo com quem diz que uma política de cotas para negros no estudo superior é discriminação. É coação, certo, mais para tentar corrigir um dos desequilíbrios que persistem na sociedade brasileira, o que reflete na educação a desigualdade de oportunidades de brancos e negros em todos os setores, mal disfarçada pela velha conversa da harmonia racial tão nossa. As cotas seriam irrealistas? Melhor igualdade artificial do que igualdade nenhuma.
Agora mesmo caíram em cima de quem disse – numa frase obviamente arrancada do contexto – que racismo de negro contra branco é justificável. Nenhum racismo é justificável, mas o ressentimento dos negros é. Construiu-se durante todos os anos em que a última nação do mundo a acabar com a escravatura continuou na prática o que o tinha abolido no papel. Não se esperava que o preconceito acabasse com o decreto da abolição, mas mais de 100 anos deveriam ter sido mais do que suficientes para que a discriminação diminuísse. Não diminuiu.
Igualar racismo de negro com racismo de branco não resiste a um teste elementar. O negro pode dizer – distinguindo com nitidez preconceito de descriminação – “Não precisa me amar, só me dê meus direitos”. Qual a frase mais próxima disto que um branco poderia dizer, sem provocar risos? “Não precisa me amar, só tenha paciência”? “Me ame, apesar de tudo”?. Pouco convincente.
É uma questão que vai e vem, como as marés. A velha oposição, na seleção brasileira, do time do povo e o time do técnico. Quando as coisas vão bem (Brasil 4, Chile 0) não há discussão, quando as coisas vão mal (Brasil ali ali, Gana 0) volta a questão. O povo quer os melhores sempre no time. Isto se repete há anos. Mudam os técnicos, mudam os melhores, muda, em boa parte o povo, e a questão continua indo e vindo. Como as marés.

sábado, 14 de abril de 2007

Um amor, uma cabana - Ana Miranda

Nossos pais diziam que para nos tornar seres completos era preciso escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho. Meu pai, que era engenheiro, acrescentava: construir uma casa. Escrevi livros, até demais, tenho um filho e plantei uma árvore, no jardim da casa onde cresci, uma muda de pau-rosa, ou flor-do-paraíso, que havia sido esquecida ao lado de uma cova estreita e funda, uma muda frágil, com poucas folhas, mais alta do que a menininha que a salvou. A muda cresceu, transformou-se em um majestoso flamboyant, coberto de flores vermelhas.

Mas nunca construí uma casa. Sonho com isso. Gostaria de construir uma casa de taipa, com as próprias mãos, amassar o barro, atirar o barro nos enxaiméis e fasquias de madeira. Não se trata de uma idiossincrasia, nem de um gesto poético, muito menos uma visão religiosa. A taipa é um material apaixonante. Tem uma nobreza histórica. As reforçadas casas e igrejas coloniais brasileiras foram feitas de taipa de pilão, há ainda hoje na Alemanha casas em taipa construídas no século 13, a própria muralha da China, símbolo da solidez, é taipa. A taipa tem mais de 9.000 anos, serviu a construções no Egito, na Mesopotâmia.

Um amigo meu, arquiteto, projetou e construiu belíssimas casas de taipa. Ele se chama Cydno da Silveira e o conheci em Brasília, poucos anos depois de plantar meu flamboyant. Cydno estudava na UnB quando, observando residências rurais, surpreendeu-se com a quantidade de casas de taipa, feitas de maneira intuitiva, quase como as abelhas fazem suas colméias. Nunca tinha ouvido falar naquilo em seu curso, e percebeu o quanto era elitista o ensino de arquitetura. Fotografou as casas de taipa todas que encontrava. Ele se formou, passou a trabalhar com as técnicas industriais, como concreto armado, mas nunca esqueceu a taipa. Deu-se conta de que não sabia construir da maneira mais rudimentar e resolveu aprender. Estudou durante anos a técnica. Descobriu taipas diversas, como a de pedra, usada no Piauí, a de madeira com bolas de barro, vista no Maranhão, a taipa de carnaúba, a taipa mista de moldura de tijolos, a taipa feita com sobras de madeira e sucata. Descobriu a maleabilidade incrível do barro, novas estruturas, novos dimensionamentos do espaço e imensas possibilidades de melhoria na técnica tradicional. Estudou a combinação com elementos da cultura industrial, mas sem descaracterizar a antiga construção de estuque.

A casa de taipa nasce do chão, vem da natureza, é construída com o material que está ali, a terra e as árvores e tem uma grande contribuição a dar a um país que não oferece moradia para todos, como o Brasil. O projeto de casas populares, que Cydno afinal desenvolveu, ensina o homem a construir sua própria casa e a cuidar dela. Tem o sentido de manter viva a sabedoria popular da taipa. Está sendo feita uma experiência na cidade de Bayeux, Paraíba, para treinamento de pessoas no projeto, construção, melhoria e restauração de edificações em taipa de pau-a-pique. Não recebendo a casa pronta, mas construindo-a, o dono toma por ela mais amor. Se for privado de sua terra, ele saberá construir uma nova habitação. O saber lhe pode servir como meio de vida, e a profissão tem um nome: taipeiro.

A casa de taipa é uma grande alternativa para a habitação no meio rural e nas periferias urbanas. Típica das populações mais pobres, é uma forma de independência, uma estratégia milenar de abrigo, preservada nos sertões brasileiros especialmente pelas mulheres. O sistema de autoconstrução elimina a aquisição de material, o transporte, o crédito, elimina o BNH e o processo industrial de construção, permite o mutirão e, principalmente, educa. É rápida a construção, usa-se mão-de-obra não qualificada, e é um instrumento para a posse imediata da terra. Permite uma construção tanto de caráter provisório quanto perene e a técnica pode ser levada a lugares onde não chega o material industrializado. Uma simples caiação evita a umidade e basta fechar as frestas onde o barbeiro gosta de fazer seu ninho. Integra a família, as mulheres e as crianças trabalham na construção e integra o grupo na sociedade quando em regime de mutirão. Apesar de tudo isso é completamente ignorada pelos meios administrativos, considerada subabitação, não há nem mesmo linha de crédito nos órgãos do governo para casa de taipa. Marcos Freire, antes de morrer, estava tratando de corrigir esse lapso. Nas esferas “civilizadas” há dificuldade em compreender a taipa. Não há legislação nem a favor nem contra. Quando da construção de Carajás, Cydno realizou um projeto de moradias em taipa de pau-a-pique para os empregados, utilizando o fartíssimo material do lugar. Seu projeto não foi aceito e os tijolos, o cimento e o ferro viajaram de avião até Carajás.

Na taipa não há desperdício de material e nem agressão ecológica, a madeira usada nas estruturas é em quantidade cinco vezes menor do que a necessária na queima de tijolos para uma parede das mesmas dimensões. “A tomada de consciência ecológica, surgida como uma ponte de luz no extremo mais estreito do túnel da crise de energia, vai servindo para provar-nos que nem sempre o habitat humano está condenado a ser feito de concreto, aço e vidro. Assim, quando tudo em arquitetura parecia dirigir-se para uma negação sempre maior da natureza que volta a oferecer uma saída diante das agruras da crise. E o faz com aquilo que lhe é primeiro e essencial, a terra, o elemento mais fecundo de tudo o que nos cerca”, escreveu o arquiteto Roberto Pontual.

Quando, nos anos 1930, Lúcio Costa projetou uma vila operária, em Monlevade, toda em taipa de pau-a-pique, escreveu: “...faz mesmo parte da terra, como formigueiro, figueira-brava e pé-de-milho – é o chão que continua... Mas justamente por isso, por ser coisa legítima da terra, tem para nós, arquitetos, uma significação respeitável e digna, enquanto que o pseudomissões, ‘normando ou colonial’, ao lado, não passa de um arremedo sem compostura”. E aconselha: devia ser adotada para casas de verão e construções econômicas de um modo geral. É uma técnica muito mais barata, atende aqueles casais remediados que desejam uma casinha de campo. O projeto de Lúcio Costa, claro, não foi aceito pela Belgo Mineira.

O Cydno vai projetar a minha casa de taipa. Vou querer na casa uma lareira, um fogão a lenha e uma vassoura daquelas de gravetos. Uma árvore frondosa por perto, pode ser flamboyant, um gramado na sombra para piquenique, contemplação ou leitura. Também dizia meu pai, nas coisas mais simples está o sentido da vida.

sábado, 7 de abril de 2007

Os Laços de Família - Clarice Lispector

A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à Estação. A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencer-se de que ambas estavam no carro. A filha, com seus olhos escuros, a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza assistia.

— Não esqueci de nada? perguntava pela terceira vez a mãe.

— Não, não, não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com paciência.

Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha, os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis que na hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro. "Perdoe alguma palavra mal dita", dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar - perturbado em ser o bom genro. "Se eu rio, eles pensam que estou louca", pensara Catarina franzindo as sobrancelhas. "Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha ganha mais um", acrescentara a mãe, e Antônio aproveitara sua gripe para tossir. Catarina, de pé, observava com malícia o marido, cuja segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo, forçado a ser filho daquela mulherzinha grisalha... Foi então que a vontade de rir tornou-se mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de rir: seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida, tornavam-se mais estrábicos - e o riso saía pelos olhos. Sempre doía um pouco ser capaz de rir. Mas nada podia fazer contra: desde pequena rira pelos olhos, desde sempre fora estrábica.

— Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe resistindo aos solavancos do carro. E apesar de Antônio não estar presente, ela usava o mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele. Tanto que uma noite Antônio se agitara: não é por culpa minha, Severina! Ele chamava a sogra de Severina, pois antes do casamento projetava serem sogra e genro modernos. Logo à primeira visita da mãe ao casal, a palavra Severina tornara-se difícil na boca do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome não impedira que... - Catarina olhava-os e ria.

— O menino sempre foi magro, mamãe, respondeu-lhe. O táxi avançava monótono.

— Magro e nervoso, acrescentou a senhora com decisão.

— Magro e nervoso, assentiu Catarina paciente. Era um menino nervoso, distraído. Durante a visita da avó tornara-se ainda mais distante, dormira mal, perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões de amor da velha. Antônio, que nunca se preocupara especialmente com a sensibilidade do filho, passara a dar indiretas à sogra, "a proteger uma criança” ...

— Não esqueci de nada..., recomeçou a mãe, quando uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas. — Ah! ah! - exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! dizia balançando a cabeça em surpresa, de repente envelhecida e pobre. E Catarina?

Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também a Catarina acontecera um desastre? seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava depressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado. Do pai, sim. Catarina sempre fora mais amiga. Quando a mãe enchia-lhes os pratos obrigando-os a comer demais, os dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava. Mas depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar - por que não chegavam logo à Estação?

— Não esqueci de nada, perguntou a mãe com voz resignada.

Catarina não queria mais fitá-la nem responder-lhe.

— Tome suas luvas! disse-lhe, recolhendo-as do chão.

— Ah! ah! minhas luvas! exclamava a mãe perplexa. Só se espiaram realmente quando as malas foram dispostas no trem, depois de trocados os beijos: a cabeça da mãe apareceu na janela.

Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos brilhantes.

O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer. A mãe tirou o espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo chapeleiro da filha. Olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma. A filha observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se "mãe e filha" fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso. A velha guardara o espelho na bolsa, e fitava-a sorrindo. O rosto usado e ainda bem esperto parecia esforçar-se por dar aos outros alguma impressão, da qual o chapéu faria parte. A campainha da Estação tocou de súbito, houve um movimento geral de ansiedade, várias pessoas correram pensando que o trem já partia: mamãe! disse a mulher. Catarina! disse a velha. Ambas se olhavam espantadas, a mala na cabeça de um carregador interrompeu-lhes a visão e um rapaz correndo segurou de passagem o braço de Catarina, deslocando-lhe a gola do vestido. Quando puderam ver-se de novo, Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se não esquecera de nada...

— ...não esqueci de nada? perguntou a mãe.

— Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa, e ambas se olhavam atônitas - porque se realmente haviam esquecido, agora era tarde demais. Uma mulher arrastava uma criança, a criança chorava, novamente a campainha da Estação soou... Mamãe, disse a mulher. Que coisa tinham esquecido de dizer uma a outra? e agora era tarde demais. Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha.

— Não vá pegar corrente de ar! gritou Catarina.

— Ora menina, sou lá criança, disse a mãe sem deixar porém de se preocupar com a própria aparência. A mão sardenta, um pouco trêmula, arranjava com delicadeza a aba do chapéu e Catarina teve subitamente vontade de lhe perguntar se fora feliz com seu pai:

— Dê lembranças a titia! gritou.

— Sim, sim!

— Mamãe, disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no meio da fumaça as rodas já se moviam.

— Catarina! disse a velha de boca aberta e olhos espantados, e ao primeiro solavanco a filha viu-a levar as mãos ao chapéu: este caíra-lhe até o nariz, deixando aparecer apenas a nova dentadura. O trem já andava e Catarina acenava. O rosto da mãe desapareceu um instante e reapareceu já sem o chapéu, o coque dos cabelos desmanchado caindo em mechas brancas sobre os ombros como as de uma donzela - o rosto estava inclinado sem sorrir, talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante.

No meio da fumaça Catarina começou a caminhar de volta, as sobrancelhas franzidas, e nos olhos a malícia dos estrábicos. Sem a companhia da mãe, recuperara o modo firme de caminhar: sozinha era mais fácil. Alguns homens a olhavam, ela era doce, um pouco pesada de corpo. Caminhava serena, moderna nos trajes, os cabelos curtos pintados de acaju. E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade - tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laranja - a força fluia e refluia no seu coração com pesada riqueza. Estava muito bonita neste momento, tão elegante; integrada na sua época e na cidade onde nascera como se a tivesse escolhido. Nos olhos vesgos qualquer pessoa adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo. Espiava as pessoas com insistência, procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe. Desviou-se dos carros, conseguiu aproximar-se do ônibus burlando a fila, espiando com ironia; nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse mais um degrau misterioso nos seus dias.

O elevador zumbia no calor da praia. Abriu a porta do apartamento enquanto se libertava do chapeuzinho com a outra mão; parecia disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito. Antônio mal levantou os olhos do livro. A tarde de sábado sempre fora "sua", e, logo depois da partida de Severina, ele a retomava com prazer, junto à escrivaninha.

— "Ela" foi?

— Foi sim, respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho. Ah, sim, lá estava o menino, pensou com alívio súbito. Seu filho. Magro e nervoso. Desde que se pusera de pé caminhara firme; mas quase aos quatro anos falava como se desconhecesse verbos: constatava as coisas com frieza, não as ligando entre si. Lá estava ele mexendo na toalha molhada, exato e distante. A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mãos em censura: este menino! Mas o menino olhava indiferente para o ar, comunicando-se consigo mesmo. Estava sempre distraído. Ninguém conseguira ainda chamar-lhe verdadeiramente a atenção. A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto: mamãe, disse o menino. Catarina voltou-se rápida. Era a primeira vez que ele dizia "mamãe" nesse tom e sem pedir nada. Fora mais que uma constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha com violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar. Desamarrotou a toalha com vigor antes de pendurá-la para secar. Talvez pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe, quem é Deus. Não, talvez: mamãe, menino quer Deus. Talvez. Só em símbolos a verdade caberia, só em símbolos é que a receberiam. Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão. Feia, disse então o menino examinando-a.

— Vamos passear! respondeu corando e pegando-o pela mão.

Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! e bateu a porta do apartamento.

Antônio mal teve tempo de levantar os olhos do livro - e com surpresa espiava a sala já vazia. Catarina! chamou, mas já se ouvia o ruído do elevador descendo. Aonde foram? perguntou-se inquieto, tossindo e assoando o nariz. Porque sábado era seu, mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sábado. Catarina! chamou aborrecido embora soubesse que ela não poderia mais ouvi-lo. Levantou-se, foi à janela e um segundo depois enxergou sua mulher e seu filho na calçada.

Os dois haviam parado, a mulher talvez decidindo o caminho a tomar. E de súbito pondo-se em marcha.

Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? pela janela via sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa, com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem adivinhava sua boca endurecida. A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também olhava fixo para a frente, surpreendida e ingênua. Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais escuras à luz do mar. Os cabelos da criança voavam...

O marido repetiu-se a pergunta que, mesmo sob a sua inocência de frase cotidiana, inquietou-o: aonde vão? Via preocupado que sua mulher guiava a criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu alcance ela transmitisse a seu filho... mas o quê? "Catarina", pensou, "Catarina, esta criança ainda é inocente!" Em que momento é que a mãe, apertando uma criança, dava-lhe esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro homem. Mais tarde seu filho, já homem, sozinho, estaria de pé diante desta mesma janela, batendo dedos nesta vidraça; preso. Obrigado a responder a um morto. Quem saberia jamais em que momento a mãe transferia ao filho a herança. E com que sombrio prazer. Agora mãe e filho compreendendo-se dentro do mistério partilhado. Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem. "Catarina", pensou com cólera, "a criança é inocente!" Tinham porém desaparecido pela praia. O mistério partilhado.

"Mas e eu? e eu?" perguntou assustado. Os dois tinham ido embora sozinhos. E ele ficara. "Com o seu sábado." E sua gripe. No apartamento arrumado, onde "tudo corria bem". Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das cortinas e dos quadros? fora isso o que ele lhe dera. Apartamento de um engenheiro. E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido moço e cheio de futuro - deprezava-a também, com aqueles olhos sonsos, fugindo com seu filho nervoso e magro. O homem inquietou-se. Porque não poderia continuar a lhe dar senão: mais sucesso. E porque sabia que ela o ajudaria a consegui-lo e odiaria o que conseguissem. Assim era aquela calma mulher de trinta e dois anos que nunca falava propriamente, como se tivesse vivido sempre. As relações entre ambos eram tão tranqüilas. Às vezes ele procurava humilhá-la, entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava ser vista nua. Por que precisava humilhá-la? no entanto ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa. Mas tinha se habituado a torna-la feminina deste modo: humilhava-a com ternura, e já agora ela sorria - sem rancor? Talvez de tudo isso tivessem nascido suas relações pacíficas, e aquelas conversas em voz tranqüila que faziam a atmosfera do lar para a criança. Ou esta se irritava às vezes? Às vezes o menino se irritava, batia os pés, gritava sob pesadelos. De onde nascera esta criaturinha vibrante, senão do que sua mulher e ele haviam cortado da vida diária. Viviam tão tranqüilos que, se se aproximava um momento de alegria, eles se olhavam rapidamente, quase irônicos, e os olhos de ambos diziam: não vamos gastá-lo, não vamos ridiculamente usá-lo. Como se tivessem vívido desde sempre.

Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria - sozinha. Sentira-se frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela. E ela conseguia tomar seus momentos - sozinha. Por exemplo, que fizera sua mulher entre o trem e o apartamento? não que a suspeitasse mas inquietava-se.

A última luz da tarde estava pesada e abatia-se com gravidade sobre os objetos. As areias estalavam secas. O dia inteiro estivera sob essa ameaça de irradiação. Que nesse momento, sem rebentar, embora, se ensurdecia cada vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício. Quando Catarina voltasse eles jantariam afastando as mariposas. O menino gritaria no primeiro sono, Catarina interromperia um momento o jantar... e o elevador não pararia por um instante sequer?! Não, o elevador não pararia um instante.

— "Depois do jantar iremos ao cinema", resolveu o homem. Porque depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador.

sexta-feira, 6 de abril de 2007

Perguntaram-me se acredito em Deus... - RUBEM ALVES

A CONTECEU AO final de um debate sobre educação promovido pela Folha. Chegada a hora das perguntas uma senhora me perguntou algo que nada tinha a ver com educação. Perguntou porque lhe doía: "O senhor acredita em Deus?" Houve tempo em que era mais fácil acreditar em Deus. Hoje até o Papa se atrapalha. Na sua visita ao campo de concentração de Treblinka perguntou o que não deveria ter perguntado: "Onde estava Deus quando esse horror aconteceu?"
Heresia porque a pergunta silenciosamente afirma que Deus não estava lá. Se estivesse não teria deixado aquele horror acontecer. Pois Deus não é amor e todo poderoso? Se estava lá e deixou acontecer ou ele não é amor ou não é todo poderoso. Por outro lado, se ele não estava lá ele não é onipresente...
Depois do atentado terrorista ao World Trade Center o "New York Times" publicou um artigo com essa mesma pergunta: Onde estava Deus? Se estava lá, por que deixou acontecer?
Dietrich Bonhoffer, pastor protestante que foi enforcado por haver participado de um frustrado atentado para assassinar Hitler -às vezes não há como fugir: ou matar um único, para que muitos não sejam mortos, ou, para preservar a pureza pessoal, não matar esse único e deixar que milhares sejam mortos; a inocência pode ser mais criminosa que o crime..., lutou com essa pergunta: "Onde está Deus?" Sua resposta foi simples: "Deus está aqui, mas ele é fraco..."
Se Deus existe e é forte, como perdoá-lo por permitir que aconteça o horror de sofrimento que não deveria acontecer? Mas se Deus é fraco ou não existe, então seria possível perdoá-lo e amá-lo. Aí choraríamos e diríamos: "Se Deus existisse e fosse forte isso não aconteceria..." A gente fica, então, com saudade do Deus que não existe. Mas eu não disse nada disso para aquela senhora. Apenas perguntei de volta, pedindo um esclarecimento: "Acreditar em qual Deus? Há tantos... Homens ferozes e vingativos têm um Deus feroz e vingativo que mantém, para sua própria alegria, uma câmara de torturas chamada Inferno para vingar-se dos seus desafetos. Há o Deus jardineiro que criou um Paraíso e mora nas árvores e nas correntes cristalinas. Há o Deus com alma de banqueiro que contabiliza débitos e créditos... Há o Deus da Cecília Meireles que se confunde com o mar... Há o Deus erótico que inspira poemas de amor carnal... Há o Deus que se vende por promessas e faz milagres... E há também o Deus criança de Alberto Caeiro e Mário Quintana. Qual deles?"
Ela ficou em silêncio, meio perdida. Então lhe respondi com os versos do Chico: "Saudade é o revés do parto. É arrumar o quarto para o filho que já morreu".
E perguntei: "Qual é a mãe que mais ama? A que arruma o quarto para o filho que chegará amanhã ou a que arruma o quarto para o filho que nunca chegará?".
E acrescentei: "Sou um construtor de altares. Construo meus altares à beira de um abismo. Eu os construo com poesia e beleza. Os fogos que acendo sobre eles iluminam o meu rosto e aquecem o meu corpo. Mas o abismo continua escuro e silencioso..."
Aí, provocado pela pergunta daquela mulher desconhecida escrevi um livrinho cujo título é a pergunta que ela me fez: "Perguntaram-me se acredito em Deus". Àquela mulher o meu muito obrigado...



terça-feira, 3 de abril de 2007

Um país-piada - CLÓVIS ROSSI

   Em qualquer lugar do mundo, empresas aéreas chamam os clientes para os aeroportos, únicos lugares dos quais podem decolar os aviões. Em qualquer lugar menos no Brasil, claro, que não é um lugar qualquer, mas uma imensa piada feita país.
A Gol emitia ontem instruções aos passageiros para que fizessem qualquer coisa, menos ir aos aeroportos, porque, no país-piada, aviões não decolam de aeroportos, ficam estacionados.
No mesmo dia em que a Gol fazia tão insólito apelo, a Varig, recém-adquirida pela mesmíssima Gol, soltava uma promoção que também é piada. Título: "Todo mundo vai voar". Oferece 90% de desconto para todos os destinos domésticos operados pela companhia, mas só neste fim de semana.
É exatamente o fim de semana em que ninguém deve ir aos aeroportos, segundo recomendação da nova dona da empresa que diz que "todo mundo vai voar".
Vai não.Tanto que outro dos atores do circense drama aéreo tupiniquim dizia ontem: "Uma paralisação longa como essa destrói a malha aérea do país. Estamos, praticamente, começando do zero neste sábado", lamentava José Carlos Pereira, presidente da Infraero, referindo-se ao "motim" dos controladores de tráfego aéreo.
"Motim" cujo encerramento foi negociado não por gente do setor, como o ministro da Defesa ou mesmo o presidente em exercício, José Alencar, que já foi ministro da Defesa, mas pelo ministro do Planejamento, que não tem por que entender alguma coisa do assunto.
Mas, no país-piada, é até melhor que seja o ministro Paulo Bernardo a negociar. Afinal, seu chefe, Lula, dizia em dezembro: "Acho que acabou a crise. A situação parece já ter se normalizado".
É outra piada, porque, três meses depois, a "normalidade" antevista por Lula era tamanha que a Gol mandava fugir do aeroporto.