sexta-feira, 18 de abril de 2008

O rádio apaixonado - MOACYR SCLIAR

Rádio de carro aumentou volume sozinho até pifar, afirma leitora. "Comecei a observar que o rádio esquentava o botão se a frente fosse deixada nele. Logo depois, começou a ficar louco: aumentava o volume sozinho, até parar de funcionar". Ela disse ainda ter notado um som estranho que saía do interior do aparelho. "Só posso escutar o rádio com o carro ligado e, a cada vez que o ligo, ele está todo desconfigurado. O meu MP4 queimou ao ser ligado ao rádio". Cotidiano, 3 de março de 2008.

MINHA QUERIDA DONA, sei que você anda se queixando de mim, publicamente, até. Você não pode imaginar o sofrimento que isto me causa, mesmo porque você provavelmente acha que rádios são objetos inanimados, sem vida própria.
Você está enganada. Ao menos no meu caso, você está enganada. Ao contrário do que você pensa, tenho sentimentos, tenho emoções. É em nome desses sentimentos e dessas emoções que lhe falo agora, tanto em AM como em FM. Na verdade, eu nem tinha tomado conhecimento de minha própria existência, até que fui instalado em seu carro.
Você estava muito feliz; tinham lhe dito que minha marca é ótima, e que você contaria com um som maravilhoso para lhe ajudar no estresse que é esse trânsito. E, eu colocado no meu lugar, você me acariciou, você tocou os meus botões. Senti um verdadeiro choque, eu que já deveria estar acostumado com eletricidade. Você fez de mim um ser vivo.
Vivo e apaixonado. Daquele momento em diante, passei a ansiar por sua presença. Era para você que eu queria transmitir as melodias que recebia por meio de tantas canções. Você ao volante, minha felicidade era completa.
Acontece que você não se deu conta disso, ou fingiu que não se dava conta disso. Você me ligava, você sintonizava uma emissora qualquer e pronto, voltava à sua vidinha. Pior: tratava-se de uma vidinha partilhada. Amigas embarcavam em seu carro. Amigos também. Você conversando com um homem, aquilo me dava ciúmes, ciúmes terríveis. O Bentinho, do Machado de Assis, aquele que desconfiava da Capitu, não sofreu tanto. Lá pelas tantas eu tinha ciúmes até do seu MP4.
Agora: o que poderia eu fazer? Humanos têm como demonstrar seus ciúmes, têm como descarregar a frustração. Mas eu sou um rádio, um bom rádio, mas rádio, de qualquer maneira. A mim não estava facultado fazer cenas. Recorri, então, àquilo que estava a meu alcance: o som.
Quando você estava com alguém de quem eu não gostava, eu aumentava meu volume -e volume, você sabe, é coisa que não me falta- até chegar a níveis insuportáveis, uma avalanche de decibéis. E aí, subitamente me calava. Para lembrar a você que o silêncio também fala, especialmente o silêncio dos traídos. Ah, sim, e queimei o seu MP4. Tinha de queimar: era ele ou eu.
Você foi se queixar com um técnico, achando que eu estava desconfigurado. Num certo sentido você está certa: estou desconfigurado, estou desfigurado, estou perturbado -mas tudo isso por causa do sofrimento que você me causou.
Querida dona, estas são minhas derradeiras palavras, antes de sair definitivamente do ar, antes do silêncio final. Minha última mensagem é esta: nunca brinque com os sentimentos de um rádio apaixonado. Você vai ter, no mínimo, surpresas desagradáveis.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

"Bullying" e incivilidade - Rosely Sayão

O "bullying" não é um fenômeno moderno, mas hoje os pais estão bem preocupados porque parece que ele se alastrou nos locais onde há grupos de crianças e jovens, principalmente na escola. Todos têm receio de que o filho seja alvo de humilhação, exclusão ou brincadeiras de mau gosto por parte dos colegas, para citar exemplos da prática, mas poucos são os que se preocupam em preparar o filho para que ele não seja autor dessas atividades. Quando pensamos no "bu- llying", logo consideramos os atos violentos e agressivos, mas é raro que os consideremos como atos de incivilidade. Vamos, então, refletir a respeito desse fenômeno sob essa ótica. Por que é que mesmo os adultos que nunca foram vítimas de atos de violência, como assalto ou furto, sentem uma grande sensação de insegurança nos espaços públicos? Simples: porque eles sentem que nesses locais tudo pode acontecer. A vida em comunidade está comprometida, e cada um faz o que julga o melhor para si sem considerar o bem comum. Outro dia, vi uma cena que exemplifica bem essa situação. Em uma farmácia repleta de clientes, só dois caixas funcionavam, o que causou uma fila imensa. Em dado momento, um terceiro caixa abriu e o atendente chamou o próximo cliente. O que aconteceu? Várias pessoas que estavam no fim da fila e outras que aguardavam ainda a sua vez correram para serem atendidas. Apenas uma jovem mulher reagiu e disse que estavam todos com pressa e aguardando a sua vez. Ela se tornou alvo de ironias e ainda ouviu um homem dizer que "a vida é dos mais espertos". Essa cena permite uma conclusão: a de que ser um cidadão responsável e respeitoso promove desvantagens. É esse clima que, de um modo geral, reina entre crianças e jovens: o de que ser um bom garoto ou aluno correto não é um bem em si. Além disso, as crianças e os jovens também convivem com essa sensação de insegurança de que, na escola, tudo pode acontecer. Muitos criam estratégias para evitar serem vistos como frágeis e se tornarem alvo de zombarias. Tais estratégias podem se transformar em atos de incivilidade. A convivência promove conflitos variados e é preciso saber negociá-los com estratégias respeitosas e civilizadas. Muitos pais ensinam seus filhos a negociarem conflitos de modo pacífico e polido, mas muitos não o fazem. É preciso estar atento a esse detalhe. Aliás, costumo dizer que é nos detalhes que a educação acontece. Faz parte também do trabalho da escola esse ensinamento. Aprender a não cometer atos de incivilidade diminuiria muito o "bullying". Para tanto, não se pode abandonar crianças ou jovens à própria sorte: é preciso a presença educativa e reguladora dos adultos. Isso vale, principalmente, nos horários escolares em que o fenômeno mais ocorre: na entrada, na saída e no recreio.

Um cenário 2008 para 2010 - CLÓVIS ROSSI

O governador Eduardo Campos (PSB-Pernambuco) tem uma boa teoria para explicar o renascimento desse Freddy Krueger da política que é a re-reeleição de Lula: o governo está forte, muito forte, mas não tem um candidato forte (ou, como prefere Campos, "candidatos naturais").

Já a oposição está "fraca de projetos", mas tem candidatos fortes ou aparentemente fortes. O lógico é que o governismo busque tapar o seu vazio com a sua grande força (Lula).
Antes de continuar, é bom dizer que Eduardo Campos não é favorável nem ao terceiro mandado nem, muito menos, ao relançamento da tese neste momento. Portanto, não está teorizando em defesa de uma determinada posição pessoal.
E jura que não tem interesse em que caia a tese da re-reeleição, para que possa ser candidato. Pela sua idade (42), acho que não é mesmo candidato, a não ser à própria reeleição. Política tem fila, embora nem sempre respeitada.
O governador conta também que, nas conversas com Lula em que apareceu o tema do terceiro mandato, o presidente foi sempre firme em rejeitar a hipótese, o que não é usual nele. O hábito do presidente, desde, aliás, os tempos de liderança sindical, é o de ouvir, sentir o interlocutor, ver para onde sopra o vento na conversa, e só depois fechar questão.
Campos conta também que, ontem, no carro que o levava do aeroporto de Roterdã ao hotel em que se hospeda em Haia, o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, fez questão de telefonar para o Brasil para conferir se era verdade que algum on-line havia informado que, na reunião com o pessoal do PDT, Lula havia dito que romperia com o PT se o PT levasse avante a idéia do terceiro mandato. Era.
Tudo somado, volta-se, pois, à tese de oposição fraca/candidatos fortes x situação forte/sem candidato ainda.

O Estado laico - CARLOS HEITOR CONY

Como as bolsas das senhoras e o comprimento das saias, há palavras que entram e saem de moda nos discursos de autoridades e nos textos da mídia. A onda agora deu relevância à transparência, à ética, aos valores republicanos e ao Estado laico.
Desde a Constituição de 1891, o Estado está separado da igreja, mas somente agora os formadores de opinião descobriram no "Aurélio" a palavra "laico". Lembram à saciedade e à sociedade que o Estado é laico.
A propósito das células-tronco, no uso e no direito de ter e de expressar a sua opinião, a igreja manifesta-se contrariamente à medida, em coerência com outras posições que ela adota há 2.000 anos, sendo como é a instituição mais antiga da história ocidental.
Ela não tem o poder de substituir o Estado, que é laico desde 1891. Nem por isso pode abdicar do dever de expressar a sua opinião sobre qualquer assunto. É um direito que outras religiões também usam. E não só as igrejas, mas associações disso e daquilo, as ONGs, as entidades que representam classes, arquitetos, advogados, médicos, bispos, pais-de-santo, jornalistas, filatelistas, homossexuais, columbófilos, escolas de samba - todos têm seus órgãos representativos, que emitem opiniões sobre questões que julgam de seu interesse.
Dentro de um Estado laico, há religiões e seitas que proíbem as transfusões de sangue, a participação em guerras, o uso de certas vacinas, de certos alimentos e de bebidas. Nenhuma delas quer ocupar a jurisdição do Estado, que todas elas reconhecem como laico.
Os cultos afro-brasileiros têm também suas regras pétreas e não são acusados de substituir o Estado. A igreja -repito- tem o direito constitucional e moral de se manifestar. E seus crentes dispõem de livre-arbítrio para acompanhá-la.

sábado, 5 de abril de 2008

Ronaldo, Messi e as máquinas - CLÓVIS ROSSI

Há grupos, infelizmente pequenos e com baixo teor de penetração no debate público, que entram na discussão sobre a mudança climática pelo lado mais abrangente, o do insustentável padrão de consumo do mundo contemporâneo. Diz essa turma que não adianta muito substituir o combustível derivado do petróleo pelo biocombustível se permanecer o incontrolável consumo de tudo o que gera gases, poluição etc.
Por mais que suspeite que a pregação de uma relativa frugalidade está fadada à derrota, ao menos no tempo de vida que me resta, ela ganha atualidade ante duas cenas muito recentes. A primeira, a de Ronaldo caído na grama e chorando (de novo) por mais uma contusão séria, durante jogo do Milan, faz apenas três semanas. A segunda, a de um menino, Lionel Messi, jogador do Barcelona, chorando (de novo) pela ruptura do bíceps femural da coxa esquerda, no jogo em que ganhamos do Celtic (1 a 0), na noite de anteontem.
O que tem o primeiro parágrafo a ver com o segundo? Do meu ponto de vista, tudo: situações como a de Ronaldo, 31 anos, e a de Messi, 20, ocorrem porque está havendo um consumo descontrolado também de seres humanos.
O jornal "El País" diz que a nova contusão do craque do Barça "reabre o debate sobre se a fragilidade muscular de Messi tem algo a ver com o tratamento hormonal a que foi submetido em sua adolescência para corrigir problemas de crescimento" (Messi passou de adolescente a adulto já no Barça, ao qual chegou aos 13 anos).
Não soa familiar? Não é o mesmo debate que se deu sobre a nova contusão de Ronaldo?
O fato é que o esporte de competição tornou-se parte da formidável engrenagem do capitalismo. Por isso, exigem-se máquinas de produzir (no caso, futebol). Nada contra o capitalismo. Mas ainda prefiro seres humanos a máquinas.

Um gênio sem idade - JOÃO PEREIRA COUTINHO

UNS TEMPOS atrás, assistindo a uma montagem prodigiosa de "Macbeth", em Londres, confesso que fixei um momento da peça que merece partilha. Leitores, aproximem-se: trata-se do delírio do general Macbeth (Patrick Stewart, na peça), que acredita ver o fantasma do rei por ele assassinado a irromper pelo banquete.
Tudo na cena é memorável: o cenário, uma mistura de cozinha com matadouro, sob forte iluminação asséptica, de uma frieza hospitalar. A mesa do banquete ao centro, com os comensais em traje militar e soviético (um "modernismo" tolerável). E, ao fundo, um elevador metálico, que permitia aos atores as entradas e saídas de cena.
Subitamente, o cenário começa a tingir-se de uma luz vermelha, como se houvesse sangue a escorrer pelas paredes. O elevador é ativado e começa a descer em direção ao palco. Então, a porta se abre (rangendo pesadamente), e de dentro do elevador sai o rei Duncan, figura sepulcral, que caminha literalmente sobre a mesa do festim, em direção a Macbeth. E, este, perante a indiferença dos comensais (que riem e conversam), aponta para o rei e grita de horror ante a visão da sua própria consciência.
Se fixei a cena, não foi apenas pelas qualidades plásticas (e bem aterrorizadoras) da encenação, que provocou algumas desistências ao intervalo (palavra). Foi sobretudo pela inteligência do jovem encenador Rupert Goold. Na peça, a assombração do rei fechava a primeira parte. Mas notável era a forma como se iniciava a segunda: o mesmo cenário, os mesmos comensais, repetindo os mesmos gestos e palavras com que terminava a primeira parte. Como se alguém tivesse recuado o "filme" alguns minutos. E, subitamente, Macbeth volta a apontar (desta vez, para o vazio) e grita novamente de horror.
No fim da primeira parte, o público assistia, por dentro, à alucinação de Macbeth. No início da segunda parte, assistia, por fora, à realidade de Macbeth. Ou, se preferirem, o público tinha duas perspetivas: a do próprio Macbeth e a dos seus convidados perante a loucura aparentemente inexplicável do general. No meu caderno de notas, apontei de imediato duas palavras: Nelson Rodrigues.
E se agora relembro a seqüência, foi por força das circunstâncias. Em coleção que só pode cobrir um português de inveja, a Folha resolveu publicar alguns clássicos da literatura brasileira. Machado de Assis, Lima Barreto, Rubem Fonseca. E o incontornável Nelson Rodrigues, com "Vestido de Noiva", a peça que praticamente reinventou o teatro brasileiro.
Li e reli a peça nos últimos dias, para escrever uma breve apresentação dela. Sempre com desconforto e fascínio crescentes. E o que impressiona em Nelson Rodrigues não é apenas a qualidade da linguagem (inultrapassável nas crônicas) nem as obsessões permanentes do autor, dilacerado por um desejo de pureza e pela certeza de que esta é inalcançável por material humano tão corrupto. O que impressiona é a absoluta modernidade de Nelson.
Em "Vestido de Noiva", Nelson Rodrigues não se limita a escrever sobre uma mulher, Alaíde, tragicamente atropelada na cidade. Nelson vai mais longe e escreve sobre a consciência dessa mulher: a forma como, habitando um limbo entre a vida e a morte, a mente de Alaíde se desdobra em três planos distintos -realidade, alucinação e memória- capazes de nos revelar a verdade mais profunda sobre ela.
Tal como em "Macbeth", é na consciência de uma personagem que encontramos os seus desejos, os seus caprichos. Os seus terrores. No caso de Alaíde, a atração inconfessável pela prostituta Clessi, um símbolo de libertação e de transgressão. A vontade igualmente inconfessável de matar Pedro, o marido. A forma velhaca como usou e abusou de Lúcia, sua irmã, seduzindo o homem que ela amava. E o temor de Alaíde de que Lúcia e Pedro conjuram para assassiná-la.
No plano da realidade, Alaíde está entre a vida e a morte. Mas será Alaíde vítima ou algoz daqueles que a rodeiam? Como em Shakespeare, não interessa apenas a Nelson Rodrigues aquilo que mostramos. Interessa o que mostramos, o que fomos e o que somos. Três estados para uma mesma condição.
"Vestido de Noiva" foi escrito e encenado em 1943. Lendo a peça, hoje, entendemos de imediato que ela poderia ter sido escrita e encenada na Inglaterra isabelina do século 16. Ou no Rio de Janeiro dos nossos dias. Ou num dos palcos do West End londrino. É a marca do gênio. Porque só os gênios não têm idade.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Ética de princípios - RUBEM ALVES

AS DUAS ÉTICAS: a ética que brota da contemplação das estrelas perfeitas, imutáveis e mortas, a que os filósofos dão o nome de ética de princípios, e a ética que brota da contemplação dos jardins imperfeitos e mutáveis, mas vivos -a que os filósofos dão o nome de ética contextual.
Os jardineiros não olham para as estrelas. Eles nada sabem sobre os estrelas que alguns dizem já ter visto por revelação dos deuses. Como os homens comuns não vêem essas estrelas, eles têm de acreditar na palavra dos que dizem já as ter visto longe, muito longe...
Os jardineiros só acreditam no que os seus olhos vêem. Pensam a partir da experiência: pegam a terra com as mãos e a cheiram...
Vou aplicar a metáfora a uma situação concreta. A mulher está com câncer em estado avançado. É certo que ela morrerá. Ela suspeita disso e tem medo.
O médico vai visitá-la. Olhando, do fundo do seu medo, no fundo dos olhos do médico ela pergunta: "Doutor, será que eu escapo desta?"
Está configurada uma situação ética. Que é que o médico vai dizer?
Se o médico for um adepto da ética estelar de princípios, a resposta será simples. Ele não terá que decidir ou escolher. O princípio é claro: dizer a verdade sempre. A enferma perguntou. A resposta terá de ser a verdade. E ele, então, responderá: "Não, a senhora não escapará desta. A senhora vai morrer..." Respondeu segundo um princípio invariável para todas as situações.
A lealdade a um princípio o livra de um pensamento perturbador: o que a verdade irá fazer com o corpo e a alma daquela mulher? O princípio, sendo absoluto, não leva em consideração o potencial destruidor da verdade.
Mas, se for um jardineiro, ele não se lembrará de nenhum princípio. Ele só pensará nos olhos suplicantes daquela mulher. Pensará que a sua palavra terá que produzir a bondade. E ele se perguntará: "Que palavra eu posso dizer que, não sendo um engano -"A senhora breve estará curada...'-, cuidará da mulher como se a palavra fosse um colo que acolhe uma criança?" E ele dirá:
"Você me faz essa pergunta porque você está com medo de morrer. Também tenho medo de morrer..." Aí, então, os dois conversarão longamente -como se estivessem de mãos dadas ...- sobre a morte que os dois haverão de enfrentar. Como sugeriu o apóstolo Paulo, a verdade está subordinada à bondade.
Pela ética de princípios, o uso da camisinha, a pesquisa das células-tronco, o aborto de fetos sem cérebro, o divórcio, a eutanásia são questões resolvidas que não requerem decisões: os princípios universais os proíbem.
Mas a ética contextual nos obriga a fazer perguntas sobre o bem ou o mal que uma ação irá criar. O uso da camisinha contribui para diminuir a incidência da Aids? As pesquisas com células-tronco contribuem para trazer a cura para uma infinidade de doenças? O aborto de um feto sem cérebro contribuirá para diminuir a dor de uma mulher? O divórcio contribuirá para que homens e mulheres possam recomeçar suas vidas afetivas? A eutanásia pode ser o único caminho para libertar uma pessoa da dor que não a deixará?
Duas éticas. A única pergunta a se fazer é: "Qual delas está mais a serviço do amor?"

Esperando o Homem-Aranha - MOACYR SCLIAR


O alpinista francês Alain Robert, 45, conhecido como o Homem-Aranha, conseguiu driblar a segurança do edifício Itália, na República, centro de São Paulo, e escalar o prédio pelo lado de fora. Robert, que já subiu nos cinco edifícios mais altos do mundo, havia sido detido no último domingo, tentando fazer a escalada do edifício, que tem 151 metros de altura. Ontem ele também acabou na delegacia e teve o passaporte apreendido. Quando foi preso, segundo a PM, uma multidão gritava para que ele fosse solto. Cotidiano, 28 de fevereiro de 2008


QUE O PAI ERA AUTORITÁRIO, isto ela sabia desde a infância. De família tradicional, implacável disciplinador (os empregados da empresa que administrava temiam-no, não ousavam levantar a voz em sua presença), submetera a filha única a rígidas regras de conduta. Que ela, no entanto, não aceitava: era uma adolescente rebelde, desafiava abertamente, e altivamente, a autoridade paterna. Tingia os cabelos de roxo, usava trapos, voltava para casa de madrugada, e aí era briga atrás de briga.
O clímax do conflito ocorreu quando tentou fugir com o namorado.O pai foi buscá-la na casa de praia em que o casalzinho havia se refugiado. E anunciou: dali por diante seria linha dura.
E foi, mesmo, linha dura. Linha dura, não; duríssima. Todas as proibições anteriores vigoravam, mais uma, que ele fez questão de salientar: a partir daquele momento a garota simplesmente não poderia mais sair de casa. Teria de ficar trancada em seu quarto, no luxuoso apartamento em que viviam, no centro da cidade.
A mãe, tradicional mediadora de conflitos, tentou intervir, mas sem resultado. A garota ficou presa mesmo. Claro, com todo o conforto; tinha som, tinha tevê, tinha computador, tinha DVD. A empregada trazia-lhe refeições e ficava à sua disposição. Mas ela não podia sair do quarto. A reclusão era por período indeterminado.
E ali ficou ela. Olhava pela janela daquele décimo andar e via, na avenida lá em baixo, rapazes e moças passando, abraçados, conversando, rindo. O que fazer? Gritar por socorro? De nada adiantaria. Afinal, se o carcereiro era o próprio pai, quem poderia libertá-la?
Foi então que leu a notícia sobre o Homem-Aranha, que, para surpresa e entusiasmo de muitas pessoas, acabara de escalar um prédio ali perto. Isto deu-lhe uma nova esperança; um tanto absurda, mas esperança, de qualquer maneira: a esperança de que o Homem-Aranha resolvesse escalar o prédio em que ela era prisioneira. E aí, quando ele passasse pela janela, ela gritaria, no seu ótimo francês (passara seis meses em Paris): Au secour, Monsieur! Sauvez-moi! Ele a salvaria, claro, e a levaria em seus fortes braços até o solo, onde seriam saudados com aplausos pela multidão. Talvez até um romance nascesse daí.
Bem, mas se isto acontecesse, a carreira dele estaria encerrada. Ela não poderia tolerar um namorado escalando prédios e olhando mulheres pela janela. De jeito nenhum. O Homem-Aranha pode ser poderoso e ágil, mas da implacável teia da Mulher-Aranha ninguém escapa.

Transparência lá e cá - CARLOS HEITOR CONY

Parece filme de Woody Allen, mas não é. Tampouco tenho certeza se foi um sonho absurdo, como costumam ser os sonhos, mas que sempre servem para alguma coisa. No meu caso pessoal, já cheguei ao exagero de escrever dois romances a partir de sonhos que tenho mesmo sem estar dormindo. Nada demais que agora escreva uma crônica que me dá menos trabalho e, tal como os romances, nenhuma glória.
Não estou acompanhando com entusiasmo (e mesmo sem ele) a campanha eleitoral nos EUA. Leio as notícias e os comentários muito por cima, sem me interessar por nenhum candidato. Nem mesmo me edifico com a transparência, que, tal como no Brasil, passou a ser virtude indispensável dos governos e dos governantes. Todos agora se preocupam com a transparência, que antigamente era atributo exclusivo de seres incorpóreos, como os anjos e alguns extraterrestres.
Sonhei que Hillary Clinton, pré-candidata democrata, após comício em que ganhou o apoio de vários convencionais que nela votarão na devida hora, chegou em casa eufórica e comunicou o sucesso ao marido: "Bill, dei uma que vai derrubar o Obama definitivamente. Prometi que serei transparente como nunca ninguém foi neste país, nem mesmo você, que foi tão opaco naquele caso com a estagiária da Casa Branca. Para mostrar transparência, decidi me assumir tal como sou e declarei que não mais usaria peruca. Num gesto teatral que provocou uma ovação delirante, arranquei a minha peruca e a joguei para os convencionais".
O ex-presidente e marido estava tentando ler sem interesse um relatório sobre as conseqüências do aquecimento global, tema que não o alarmava pessoalmente. Sem tirar os olhos da papelada, estranhou:
"Mas querida, você nunca usou peruca!".

quinta-feira, 3 de abril de 2008

River! Boca! - Luis Fernado Veríssimo

Foi um mal-entendido. Alguém deveria ir nos buscar no aeroporto de Miami e não apareceu. Ficamos mais de duas horas esperando num saguão vazio, que enchia a intervalos com a chegada de outros vôos e logo esvaziava de novo. E então nossa única companhia eram dois funcionários do aeroporto, dois faxineiros negros que vez por outra apareciam em extremidades opostas do saguão, a caminho de outro lugar. Quando dava a casualidade de os dois aparecerem ao mesmo tempo, um gritava para o outro:
- River!
E o outro respondia, lá do outro lado:
- Boca!
Aquilo se repetiu não sei quantas vezes, enquanto esperávamos no saguão. Era só se enxergarem e um gritava:
- River!
E o outro:
- Boca!
Os dois eram corpulentos. Idades indefinidas. Poderiam ser gêmeos. Argentinos, claro. Não dava para imaginar dois americanos, ou latino-americanos de outra parte, evocando o River Plate e o Boca Juniors daquele jeito. Portenhos, por certo, embora seus físicos não fossem típicos. E a troca de gritos, aparentemente, repetia-se o tempo todo. O dia todo, todos os dias.
- River!
- Boca!
Era só se enxergarem.
Tinha começado como brincadeira, imaginei. Talvez tivessem chegado juntos aos Estados Unidos. Talvez fossem parentes, cunhados ou vizinhos. Só o que os separava era que um torcia pelo River e o outro pelo Boca. Cultivar aquela diferença era uma maneira de continuar em Buenos Aires. Era provável que nunca mais tivessem visto seus times jogar, mas ainda proclamavam sua paixão antiga. Nem que fosse só um para o outro, através de um saguão vazio.
- River!
- Boca!
Não era mais uma troca de provocações bem humoradas. Não era mais uma brincadeira. O tom ficara lamentoso. Os dois dependiam daquela rotina invariável para certificarem-se de que estavam ali, que continuavam existindo, e argentinos, mesmo longe de casa. E continuavam River e Boca. Uma ladainha contra o esquecimento, pensei. Uma canção do exílio para duas vozes tristes. Ou isto é literatura e os dois antípodas só combatiam o tédio.
Os dois devem continuar lá, fazendo a mesma coisa. O dia todo, todos os dias.
- River!
- Boca!

No papo de quem? - ELIANE CANTANHÊDE

Só não vê quem não quer: a tese da re-reeleição de Lula, reprimida em público, corre solta em corações e mentes do governo, do PT e da base aliada.
O próprio vice-presidente, José Alencar, disse à rádio Bandeirantes: "O Lula deseja fazer o seu sucessor. Mas eu digo para você que, se perguntarem aos brasileiros, o que os brasileiros desejam é que o Lula fique mais tempo no poder".
Em politiquês, leia-se: segundo Alencar, Lula não quer e não tem nada a ver com isso, mas os eleitores estão doidos para empurrá-lo rampa acima de novo. O vice, nada menos que o vice, namora publicamente com a possibilidade do terceiro mandato do presidente.
Lula não pode admitir uma barbaridade dessas a dois anos das eleições presidenciais, mas a idéia paira sobre o Brasil, empurrada pelas circunstâncias políticas internas e pelos ventos sul-americanos.
Na política interna: José Dirceu caiu, Antonio Palocci despencou, Dilma Rousseff nem decolou e já sacoleja sob o impacto do dossiê do uiscão. O PT não tinha quadros para repor Dirceu e Palocci, nem tem um Plano B para o caso de Dilma não sair do chão. E convém desconfiar do interesse petista em apoiar um corpo estranho, apesar de aliado. Ciro Gomes (PSB), por exemplo, que vai bem nas pesquisas.
Enquanto isso, Lula navega em recordes de popularidade, diz o que bem entende, onde bem entende, e avisa que a oposição "pode ir tirando o cavalinho da chuva", porque a eleição de 2010 está no papo. OK. Mas no papo de quem?
Quanto ao continente: Chávez perdeu o referendo na Venezuela, mas deixou um rastro continuísta.
Por ora, Néstor já estendeu o mandato Kirchner, elegendo Cristina na Argentina, e Álvaro Uribe está assanhado na Colômbia. Porque, como diria Alencar, o povo quer.
No Brasil, o "povo" pode vir a querer, e a política, a viabilizar. Lula vai na onda e justifica: "Eu sou a "metamorfose ambulante", lembram?".

A hora do caudilho - CLÓVIS ROSSI

Quando ainda era assessor de imprensa da Presidência, o jornalista Ricardo Kotscho perguntou a seu chefe e amigo Luiz Inácio Lula da Silva o que gostaria de ser se não fosse presidente. "Candidato", respondeu Lula, de bate-pronto.
Anteontem, sem mais nem menos, o vice-presidente José Alencar disse que, "se perguntarem aos brasileiros, o que os brasileiros desejam é que o Lula fique mais tempo no poder". Parece ser verdade, a julgar pelas pesquisas.
Somando-se o primeiro parágrafo ao segundo, ter-se-ia o mais clássico caso de juntar a fome com a vontade de comer. Quer dizer, então, que vem aí a re-reeleição de Lula? Não necessariamente. Até prova em contrário, sou obrigado a tomar pelo valor de face as reiteradas afirmações de Lula de que um terceiro mandato consecutivo seria "brincar com a democracia".
A minha interpretação para a soma dos dois parágrafos iniciais é esta: Lula vai fazer o diabo para tentar eleger seu sucessor. Óbvio? Nem tanto, a julgar pelas especulações, inclusive recentes, de que ele faria corpo mole em 2010 para ter o caminho aplainado para voltar em 2014.
Fazer o diabo significa desconhecer limites para lealdades e nomes. O presidente já demonstrou que não morre abraçado nem com os mais próximos. Dispensou rapidinho, por exemplo, José Dirceu e Antonio Palocci.
Dispensará, portanto, manda a lógica, qualquer candidato/a a candidato/a que não decolar. Já demonstrou também que abraça ex-adversários com a mesma facilidade com que os atacava rudemente antes. A lista é imensa.
Creio que a única condição para um candidato ter em Lula um grande eleitor em 2010 será a capacidade de não ameaçar o caudilhismo que Lula exerce desde o sindicato de São Bernardo e que se firmou muito na Presidência.

Babaus - Luis Fernando Verissimo

E agora essa. Li que duas pessoas recorreram à Justiça para impedir que o Centro Europeu de Pesquisa Nuclear ponha em funcionamento o gigantesco acelerador de partículas que está construindo há 14 anos perto de Genebra, alegando que um dos resultados da colisão de prótons em escala inédita que acontecerá dentro do acelerador pode ser a criação de um buraco negro que engoliria a Terra - e talvez o Universo.

A inauguração do acelerador está marcada para este verão europeu. Por via das dúvidas, enquanto não se resolver a questão, não faça planos para depois de julho.

A colisão dos prótons dentro do superacelerador recriará energias e condições que ocorreram pela primeira (e última) vez na fração de segundo depois do Big Bang que deu origem a, literalmente, tudo. Pesquisadores estudarão os efeitos destes choques atrás de novas pistas sobre a natureza da massa e das forças que formam o Universo.

Calcula-se que quase 90% da matéria do Universo é chamada pelos cientistas de "matéria negra" para não precisarem chamá-la de "mistério", ou de "seja lá o que for". Com o novo acelerador se estaria avançando alguns passos importantes nessa escuridão.

Mas como as partículas subatômicas são notoriamente imprevisíveis, o resultado de mais este exemplo da bisbilhotice humana poderia ser uma grande surpresa, a surpresa final. Em vez de um Big Bang, teríamos um Big Slurp, que nos chuparia - você, eu e todas as galáxias - para o nada, ou seja lá o que exista do outro lado do buraco.

Quase todos os cientistas ouvidos sobre a questão dizem que não há perigo. Os buracos negros, se aparecerem, serão pequenos (engolindo, presumivelmente, só a Suíça).

O alarmismo atual é equiparado ao que acompanhou a construção da bomba atômica em Los Alamos, quando se especulava que uma única explosão nuclear poderia incendiar toda a atmosfera terrestre.

E os alarmistas de hoje não parecem merecer muito crédito. Um é espanhol, o outro mora no Havaí, de onde partiu a ação judicial, e nenhum dos dois é físico praticante.

Mas o que assusta é que alguns cientistas, inclusive um tal Mangano ligado ao CEPN, não acham a hipótese tão fantástica assim, e o próprio CEPN montou um grupo de avaliação de segurança para rever o projeto antes de ligar o acelerador.

Quer dizer, não quero estragar o dia de ninguém, mas nosso velho Universo pode estar dando suas últimas voltas.

Haverá tempo para uma última especulação, antes de sermos chupados. Talvez o significado de um dos fenômenos mais misteriosos do Universo, o de astros longínquos que desaparecem para dentro de si mesmos, seja que em algum lugar do cosmo os cientistas locais foram curiosos demais, e deram um passo que não era para dar.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Leviandade é crime - CLÓVIS ROSSI

Se o poder público brasileiro (no caso, o paulista) adotasse o devido rigor, puniria o delegado responsável pelo caso da menina Isabella Oliveira Nardoni, 5 anos, morta no sábado, por colocar o pai como suspeito.
No fundo, estamos diante de uma gênese idêntica ao escândalo da Escola Base, no qual a mídia foi crucificada, com toda a justiça. Mas faltou mais alguém na cruz: o delegado responsável pela investigação do caso.
Vamos rebobinar um pouco a fita e analisar as circunstâncias em que se deu a desumana crucificação dos responsáveis pela escola, apontados como abusadores de crianças.
Quem detinha, com exclusividade, todas as informações? O delegado.
Ninguém mais. Quem repassou as informações aos jornalistas, coletivamente? O delegado. Aos jornalistas, restava um de dois caminhos: duvidar ou acreditar (claro que me refiro aos jornalistas de boa-fé; os que têm índole sensacionalista não precisam acreditar ou duvidar de nada para dar vazão à índole).
Mais: se duvidassem e decidissem não publicar, seria preciso que todos tivessem idêntico comportamento. Um só que publicasse já estaria provocando o dano à reputação dos donos da escola.
Agora é um pouco a mesma coisa.
O delegado deu entrevista que a Rede Globo, pelo menos, pôs no ar (não vi outros telejornais, mas suspeito que todos o tenham feito).
Adiantaria alguma coisa se a Folha, digamos, não publicasse a acusação ao pai da menina?
Salvaria a face do jornal, mas não salvaria o principal, que é a reputação do pai.
Nem importa, no caso, se vier a se comprovar que o pai é mesmo culpado. Não cabe ao delegado, ao menos nesta fase da investigação, dizer quem é ou não suspeito.
Se o pai for de fato culpado, será punido ao fim da investigação. Se for inocente, já está punido.

As prioridades - DANUZA LEÃO

QUAL É A pessoa que você trata melhor neste mundo? Não vale dizer assim, sem nem pensar -"meu pai, minha mãe, meus filhos".
Feche os olhos e faça uma reflexão profunda: quando você chega em casa e tem um monte de recados na máquina, para quem você liga primeiro? Para sua mãe, que está em ótima saúde, ou para aquela pessoa que ficou de dar a resposta sobre um projeto? Para seu pai, que joga vôlei todos os dias, ou para aquela mulher maravilhosa, seu sonho de consumo há anos? Bem, respondidas essas perguntas, vamos em frente.
É doloroso, mas é verdade: cada um de nós procura primeiro pelo que mais o está interessando naquele momento, e que pode até ser o pai ou a mãe -mas quase nunca é. A não ser, claro, quando esse pai ou essa mãe ficaram de responder a algum pedido, seja de que tipo for, para o filho querido. Mas se, no fundo do seu coração, você detectar que o telefonema é só para saber se você melhorou da gripe, pensando bem, dá perfeitamente para fingir que foi do trabalho direto para o cinema e ligar amanhã de manhã, não é mesmo?
E por que será que as mães têm a mania de saber da evolução da gripe de seus filhos?
Com filho é diferente. Não há pai ou mãe -mãe, sobretudo- no mundo que não interrompa a mais importante das reuniões de trabalho para atender a um telefonema do filho, e ainda está para nascer uma que tenha coragem de mandar dizer que naquele momento está ocupada. Aliás, é só saber que é ele que está chamando para dar um aperto no coração; será que está bem? Será que está precisando de alguma coisa? Será que caiu e quebrou a perna?
Não há uma só que consiga pensar que, se ele está telefonando, tão mal assim não pode estar.
Voltando aos recados: se for aquela pessoa bem famosa, que você conhece mas que não chega a ser um amigo, você liga correndo, não liga? E se for sua antiga babá, que te segurava no colo e contava histórias para você dormir?
Você adora ela, claro, mas depois de um dia tão duro -ah, dá para ligar amanhã, claro que dá.
Tem mais: você já reparou como são bem tratadas as pessoas com quem a intimidade é pouca?
É duro de admitir, mas costumamos tratar melhor as pessoas a quem conhecemos pouco, e mais: que nos dão pouca bola. E isso em todos os níveis, sobretudo quando se trata de amor. Por que a maior parte das pessoas ama tão apaixonadamente quem não aparece, quem trata meio mal, quem não ama direito?
Esses são absolutamente irresistíveis, enquanto daqueles que nos amam de paixão a gente pode até gostar, mas com uma mal disfarçada indiferença. Nada mais desestimulante do que ter certeza; aliás, certeza seja do que for, sobretudo do amor de um homem.
Nada deixa você mais viva, digamos assim, do que estar na corda bamba, sem saber o que vai ser do seu amanhã. Será que ele vem? Essa falta de segurança -exatamente a tal segurança que se busca em todos os momentos- é que move o mundo. É ela a responsável pelas academias de ginástica, pelos salões de cabeleireiro, pela indústria da moda, e mente quem diz que quer ficar bonita "para ela mesma". Pois sim.
As mulheres fazem tudo para ficarem desejáveis para um homem em particular ou para todos em geral, e se conseguem um dia ter certeza da estabilidade no amor, ai do outro.
Feliz ou infelizmente, as pessoas que mais nos amam são as que tratamos com mais displicência. Tratamos assim nossos pais, e assim nos tratam nossos filhos, pela certeza desse amor eterno e incondicional.
Não é justo que seja assim, mas desde quando a vida é justa?

Amarga descoberta científica - MARCELO COELHO

BEM QUE eu desconfiava. Passei anos consumindo chicletes sem açúcar e refrigerantes light, sem que a balança registrasse qualquer esperança de emagrecimento. Pesquisadores de uma universidade americana, segundo li recentemente, chegaram a uma excelente explicação para esse frustrante fenômeno doméstico.
O sabor doce da sacarina envia sinais ao cérebro, preparando o organismo para a ingestão de muitas calorias. As calorias não chegam; o cérebro se desregula, entra em pânico, exige o que lhe foi prometido.
Como resultado, o organismo consome mais comida, salgada, doce, amarga ou azeda, pouco importa.
Ou queima menos calorias. E o indivíduo que ingere sacarina termina tão ou mais gordo do que antes.
A experiência foi com ratos de laboratório. Tudo bem, posso não ser um rato. Mas em matéria de chocolates, tortas ou sorvetes, desconfio que minha voracidade cerebral pode muito bem ser comparada à de um roedor médio norte-americano.
A pesquisa haverá de trazer conseqüências terríveis. Nem falo das fábricas de adoçante. Penso no que pode acontecer se a descoberta for aplicada de outros modos.
Suponha, por exemplo, que em vez de provar um gole de guaraná diet, você esteja simplesmente vendo, na mesa ao lado do restaurante, um felizardo refestelar-se num caldeirão de fondue de chocolate.
Seu cérebro, como o de um camundongo, desejará mergulhar na calda derretida; o mero desejo será suficiente para que o seu organismo extraia, de meia bolacha de trigo integral, calorias suficientes para explodir os botões, que mal e mal se fecham, da camisa que você ganhou no mês passado.
Conclusão inevitável: assim como há fumantes passivos, há gordos passivos. Hesito em me incluir tão depressa nessa categoria, mas lanço a advertência.
Logo será necessário reservar alas especiais nos restaurantes para os que comem chocolate; um biombo, decorado com hortaliças, evitará a emissão de mensagens indevidas ao cérebro dos tristes obesos presentes no local.
Anuncia-se uma mudança de paradigma científico. No futuro, haverá mais remédios para o cérebro, e menos para o resto do corpo. E, menos do que regular nosso metabolismo, talvez a preocupação passe a ser, de agora em diante, controlar nosso desejo.
Todo sujeito que luta contra a própria obesidade sempre soube disso, aliás. O problema está nele mesmo. Nenhuma vulgar sacarina poderia ser a poção miraculosa capaz de transformar o seu destino de gordo.
Aquelas pérolas turvas, contadas com atenção, nunca substituíram o prazer de um doce; são na verdade um luxo suplementar, que em geral se economiza ("só duas gotas, obrigado"). Não se contam as calorias, contam-se as gotinhas.
Talvez os neurocientistas tenham de pesquisar também o efeito calmante, hipotensivo, antiansiógeno da sacarina. A insatisfação cerebral do rato alimentado com esse produto teria de ser comparada à angústia do humano que abandonou, para sempre, a ilusão de um emagrecimento à base de adoçantes. Curiosamente, a pesquisa confirma uma hipótese, à primeira vista alucinada, que li no livro "Mais Sexo É Sexo Mais Seguro" (editora Campus). O autor, Steven Landsburg, é um daqueles teóricos da "freakonomics" que se dedicam a aplicar as leis do mercado aos pequenos problemas do cotidiano.
É tão liberalofrênico que considera um absurdo as pessoas fazerem fila para tomar água num bebedouro público; num mundo racional, argumenta, furar filas faria muito mais sentido.
Landsburg arrisca a teoria de que a obesidade aumentou nos Estados Unidos porque mais pessoas consomem produtos light e remédios contra colesterol. Acham que estão cuidando da saúde, e terminam pesando 200 quilos.
E o McDonald's? É uma das explicações habituais para a engorda geral, que Landsburg descarta. "O McDonald's decidiu, por capricho, tornar todos mais gordos? Ou suas pesquisas de mercado revelaram que clientes maiores passaram a exigir porções maiores? Aposto na segunda hipótese; afinal, o McDonald's era tão ganancioso em 1970 quanto hoje."
O raciocínio é difícil de engolir, porque ignora um processo básico do mercado: o da livre concorrência, capaz de estimular que várias redes de lanchonetes entrem em competição no quesito calorias por centavo de dólar. Mas isso é assunto para outro dia; artigos, como hambúrgueres, fazem mal no modelo "supersized".

terça-feira, 1 de abril de 2008

Receita padrão de adultério - CARLOS HEITOR CONY

NÃO SUPORTOU mais e foi procurar o amigo escritor. Era amizade antiga, mas distante. De há muito o considerava um péssimo caráter, capaz de cometer qualquer miséria desde que tivesse lucro com uma mulher ou com um assunto que lhe desse inspiração. Aproveitava-lhe a sabedoria, mas evitava contagiar-se com a devassidão de sua vida abominável.
Ele desejava mudar o nome do prédio onde morava (Babilônia), aconselhara-se com o amigo, haveria uma reunião de condomínio e o escritor incentivou-o, que fosse formidando ao fazer a proposta.
- Formidando? Quê que é isso?
- Uma expressão clássica, Raul Pompéia usava muito em "O Ateneu", o professor Aristarco era formidando. Significa formidável, feroz, tonitruante.
- É isso aí! Serei formidando!
A reunião foi numa sexta-feira, à noite, nada teve de formidanda. No sábado, ele voltou ao amigo.
- Como é? Você foi formidando?
- Formidando uma ova! Foi um desastre!
- Mas por que diabo você quer mudar o nome do prédio?
Abriu-se. Pela primeira vez na vida, abria-se.
Tinha medo de ser traído. Sabia que as mulheres depois de certa idade sofriam crises, as tentações eram muitas. Ele achava que o nome "Babilônia" era um péssimo agouro. Mas reconhecia que não adiantava mudar o nome do prédio.
- É. Não resolve mesmo, admitiu o amigo.
- Você seria capaz de dar em cima da minha mulher?
A pergunta, à queima-roupa, desorientou o escritor, que apesar de cínico não estava preparado para ela.
- Não. Ela é muito magra.
- Era. Agora engordou um pouco.
Para ser fiel ao papel de cínico, o amigo novamente admitiu:
- Bem, se está no ponto, por que não?
- Você gosta de mulher gorda?
- Nada disso. Mas mulher magra foi uma impostura dos costureiros, dos modistas. São, em geral, pederastas. Odeiam a mulher. Querem os homens todos para eles e o melhor modo de eliminar a concorrência é obrigar a mulher a ficar ossuda, sem carnes. As idiotas fazem regime, ficam com as pernas que parecem palitos, a bunda vira uma tábua. Não é à toa que os homossexuais terminam levando vantagens. Agora, veja, as fêmeas bíblicas, a mulher das Escrituras, as mulheres de Renoir, de Rubens, as madonas, a "Fornarina" de Rafael...
- Bem, eu não entendo muito disso, mas acho que você tem razão.
- Uma porrada de razão! Os homens gostam e se casam com mulheres magras para a exibição, o jogo social. Na hora de rebolar na cama, preferem as gordinhas, as falsas magras...Todas as amantes dos meus amigos são assim...
- Eu não tenho amantes, Otávia me basta.
O amigo ia dizer qualquer coisa, freou-se a tempo.
- Você acha que sua mulher seria capaz de um adultério?
- Sei lá.
- Bom, em princípio todas as mulheres são capazes disso. Elas têm a matéria-prima do adultério: o sexo e o marido. Falta apenas o beneficiamento, que é o terceiro elemento, o amante, que não é difícil de encontrar. Mas fique sabendo, nenhuma mulher nasce adúltera, como os poetas que nascem poetas. Ela se faz, como os oradores. Ou melhor, o marido é que a faz adúltera.
- Você já cometeu adultério?
O amigo fingiu que não ouvira bem, mesmo assim tirou o corpo fora:
- Eu sou solteiro!
- Não é isso que quero dizer. Pergunto se você já cometeu adultério com alguma mulher casada?
- Que eu saiba, não. Não gosto de adultérios. Eles precisam de hotéis sórdidos, exigem códigos ridículos, praticam ritos abomináveis, dificilmente se comete adultério em paz de espírito.
- Isso é necessário? Essa paz de espírito?
- Tanta mulher no mundo, porque escolher uma que pode dar problema?
- O problema pode compensar.
Calaram-se por um tempo. O escritor ofereceu um uísque.
- Bem, por hoje chega. Aprendi bastante. Outro dia apareço.
- Você tem lido meus livros? -a pergunta foi também à queima-roupa.
- Não. Otávia acha-os indecentes e eu termino escondendo-os. Na última mudança, sumiram.
- Ainda bem. Qualquer que seja a solução do seu caso, mantenha-me informado. Você pode me dar bom assunto.

Uma a menos? - ELIANE CANTANHÊDE

O Palácio do Planalto e uma penca de ministros desmentiram publicamente a existência do tal dossiê contra o casal FHC-Ruth Cardoso, e a ministra Dilma Rousseff chegou ao requinte de telefonar para a ex-primeira-dama garantindo que não havia nada disso. No tortuoso caminho para desmentir os desmentidos, o "dossiê" derrapou, virou "banco de dados" e um vexame nacional.

Parte do vexame é tentar atribuir o vazamento do dossiê do uiscão a algum tucano infiltrado no Planalto. Um tucano próximo o suficiente para ter acesso à operação e a seus detalhes, mas distante o bastante para entregar o ouro dos companheiros? Com Lula no segundo mandato, no quinto ano de governo e blindado por uma popularidade na estratosfera?
Olhando de fora, o mais provável é que o PT esteja exercitando uma velha prática do PT: a luta interna. Dilma Rousseff foi saudada como dura na queda, incorruptível, vítima da ditadura e boa executiva num governo em que bons executivos são (ou eram) peças raríssimas. Já são qualidades suficientes para atiçar um preconceito daqui, um ciúme dali e, claro, inveja de tudo quanto é lado.
Mas, ao se tornar "mãe do PAC" e presidenciável do coração de Lula, acendeu um outro sentimento ao seu redor: o da disputa. Ministros, governadores e a companheirada petista em geral engoliria assim, tão facilmente, a candidatura de uma neófita saída do PDT? Gritalhona?
Com 3% nas pesquisas? Ora, ora.
Em vez de tucanos infiltrados, Dilma deveria olhar à sua esquerda e à sua direita para identificar resistências à preferida de Lula para 2010. Uma coisa é certa: alguns caciques petistas podem nem ter nada a ver com o vazamento, mas não ficaram nem um pouco tristes com o sufoco da ministra e o recuo da presidenciável. Ao contrário.
O dossiê passa, e a fila anda -a fila de presidenciáveis petistas loucos pela bênção de Lula.


Que data você escolheria? - Zuenir Ventura

Este ano tem tantas datas redondas a comemorar - de pessoas ou acontecimentos - que eu não sei se vai sobrar tempo para 2008 viver 2008. Ele corre o risco de ser todo de lembranças, periga o passado tomar conta do presente, principalmente quando olhar para trás é às vezes mais confortável do que olhar para o lado. Cem anos da morte de Machado de Assis e do nascimento de Guimarães Rosa. Duzentos anos da chegada da Família Real ao Brasil e do advento da Medicina. Cinqüenta anos da Bossa Nova, da Copa da Suécia e de todo o 1958. Quarenta anos de 1968. Centenário da imigração japonesa e do Atlético mineiro, sem falar no que certamente esqueci.
Existe - como não poderia deixar de ser no país do Fla x Flu, em que se disputa até com palito de fósforo - uma competição informal para saber que data é mais significativa: 1808 ou 1968? 1968 ou 1958? Maria Adelaide Amaral introduziu um outro ano nesse torneio, ao situar a trama de sua mini-série "Queridos amigos" em 1989, que ela elegeu como "tão ou mais importante do que 1968" (o curioso é que os personagens vivem em 89, mas se alimentam das recordações, da saudade e até dos traumas de 68. Alguns foram ativos militantes políticos, outro renega cinicamente seu passado de luta e a mais dramática figura da história não consegue se livrar das lembranças da tortura e das sevícias que sofreu na prisão. Na ficção, como na vida real, as pessoas têm dificuldade de esquecer aquele ano).
Se fosse entrar nesse campeonato do "mais importante", eu não teria dúvida em votar nos dois centenários, o de Machado e o de Rosa. Eles são suficientes para inflar o nosso ego e compensar carências atuais. Se tivessem escrito numa língua menos excêntrica, os dois maiores monstros de nossas Letras iriam figurar no panteão internacional de glórias literárias.
Se fosse, já não digo o inglês, mas o espanhol, ou mesmo o português de Portugal, eles estariam presentes, por exemplo, em "O cânone ocidental", livro do crítico americano Harold Bloom, que cometeu a injustiça de selecionar cerca de 500 nomes ocidentais que julga paradigmáticos e sequer citar nossos conterrâneos. Em compensação, não se esqueceu de Borges e Fernando Pessoa - muito justo - mas também de autores como Pablo Neruda, García Marquez e Vargas Llosa, que, com todo o respeito ao Prêmio Nobel (os dois primeiros ganharam), não são superiores em excelência literária aos nossos dois representantes.
Dizer que Neruda é, "segundo consenso geral, o mais universal desses poetas" [hispano-portugueses], sem se referir a Drummond e a Bandeira, mostra desconhecimento inadmissível num especialista. Daí que as embaixadas brasileiras deveriam ter como tarefa cultural providenciar traduções de nossos clássicos e bombardear críticos famosos e desinformados como esse Bloom.