"Somos uns animais diferentes dos outros, provavelmente inferiores aos outros, duma sensibilidade excessiva, duma vaidade imensa que nos afasta dos que não são doentes como nós."
Graciliano Ramos
ERA ASSIM que Graciliano se referia à raça dos escritores, incluindo-se na definição em carta à irmã Heloísa, escrita em 1935. Na Festa Literária Internacional de Parati, que acabou domingo último, bicharada escrevedora concentrou-se por quatro dias, lendo, comendo, bebendo e discutindo pelas ruas de pedras bulbosas, botecos repletos, calor de lascar de dia e, à noite, o frio combatido com casacões e cachaça produzida nos alambiques da cidade.
No meio da festa, ando até a rodoviária para descansar um pouco da tal da vida literária -a lata de sardinhas do mercado editorial em que se transforma o centro histórico da cidade durante a Flip. Gente de letras. O sol não dá sinal de que vai parar de tostá-las, suas cabeças premiadas, Nobels e Astúrias e coisa e tal.
No terminal de ônibus, uma velha agarrada a uma sacola de plástico olha fixamente para uma TV, hipnotizada pelos orientais lutando na tela. Crianças com uniforme de escola pública esperam ônibus para cidades vizinhas, precisam viajar para aprender o be-a-básico. Roem algum tipo de pão seco e sem recheio, fazendo barulho e mostrando como o mastigam, dentes podres tão cedo.
Um cachorro preto ronda as crianças, trota com a altivez que os cavalos puxadores de carroça da cidade não têm, os que levam tocos de árvore aos restaurantes de forno a lenha ou vão montados. Não late.
Tremendo beco essa vida às vezes, quando se é bicho. O escritor norte-americano Jim Dodge, convidado da festa, passou os quatro dias em coletivas e sessões de autógrafos, em companhia de uma pata de gesso que fizeram segui-lo, a título de marketing por seu cult-livro "Fup" -que trata, justamente, de uma pata gorda. Inicialmente, Dodge ficou constrangido com a coisa; depois já brincava com o bico da Fup fake.
Na praça, patos passaram a semana num cercadinho cheio de bonecos representativos do folclore literário. Escritores chegaram a tramar, em delírio noturno, uma ação ecoterrorista para libertar os patos. Mas surgiu o problema: libertar os bichos e soltar onde? Os patos continuaram fazendo parte da decoração da festa.
Caminho de volta à cidade puxando a bolsa que levo nas costas com a dignidade dos cavalos tronchos, enxergando tanto quanto eles: não se pode despregar os olhos do chão em Paraty ou as pedras te passam a perna. Cada passo é uma surpresa, pedras largas sucedem-se às menores, alto e baixo relevo, escorregadio. Limo, lama, essas coisas que se apegam à gente quando ninguém mais se apegaria. Entro na rua Dona Geralda e agora esbugalho os olhos, atenta aos conhecidos. Passam aos trancos e barrancos pelas calçadas, acenando com livros nas mãos.
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