domingo, 27 de janeiro de 2008

Mas o que é ficção e o que é realidade? - NOEMI JAFFE

Hitler foi colega de classe de Wittgenstein. Às vezes, penso como essa convivência entre um alemão mediano e um judeu genial pode ter germinado, na indecifrável alma do primeiro, a idéia da guerra, cuja origem pode ter sido uma pequena inveja.

À espera da entrevista de Ishmael Beah, sento na calçada e ouço gritarem: "Ishmael foi comer pastel!". Vou ao banheiro do hotel dos autores, um solar colonial, e lá está o Ishmael do pastel, lutando com a tramela emperrada da porta do banheiro.
Serra-leonês que lutou na guerra civil africana, matou o primeiro homem aos 13, perdeu pai e mãe, foi drogado e manipulado, agora briga com a trava da porta emperrada. Volto à calçada. Vejo Robert Fisk no andar de cima, tentando consertar uma janela emoldurada do século 18, que também emperrou.
Todos parecem tranqüilos. Ouço um senhor dizer: "No Ceará há 810 Adões. A história remonta ao século 16, quando certo Adão chegou da ilha dos Açores, fugindo da Inquisição."
Vou à entrevista coletiva. Beah, um menino idoso de 26 anos, que viaja pelo mundo tentando conscientizar as pessoas sobre a necessidade de crianças pobres terem chance de conhecer a si mesmas, responde minha pergunta com outra: "Mas o que é ficção e o que é realidade?" Ele diz não saber. Também não sei, nem mesmo quando a dita realidade esperneia na nossa frente, dizendo: "Eu sou terrível!", como numa guerra.
Vou ao show da Orquestra Imperial e de João Donato. Bárbara Heliodora discursa e fala que algum personagem de Nelson Rodrigues "emasculou" alguma coisa e que ele tinha um "pernambucano ouvido". Coetzee ouve, austero. O que será que pensa? Entra a Orquestra. Beah olha, ansioso, e, após uns minutos, começa a dançar.
Não sei a diferença entre ficção e realidade. Mas sei que pequenas coisas podem determinar muito, para o bem e para o mal. Na verdade, isso não tem importância, e aqui, agora, não quero nem saber.

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