quarta-feira, 25 de julho de 2012

Assim não dá, Deputado! - Sírio Possenti

Um ditado popular diz que pelo dedo se conhece o gigante. Acho que não há, mas deveria haver, um ditado desse tipo com conotações negativas análogas, algo como "pela orelha se conhece o burro", assim como há o prêmio Ig-Nóbil, o avesso do Nobel, para "premiar" pesquisas esquisitas, e o Prêmio Santa Clara, que os colunistas de cultura atribuem aos piores programas e apresentadores da TV brasileira (as explicações dos jurados, às vezes, merecem o prêmio que concedem...). Mas não há um ditado com alcance negativo genérico, talvez porque seja mais difícil dar conta de todos os defeitos em que a humanidade se especializou do que de suas virtudes. Não há, mas devia haver. Se houvesse, e se eu pudesse opinar, ele iria para o deputado Aldo Rebelo. Ele tem tudo, aliás, para ser hors concours. É que ele não acerta uma quando se trata de língua. Explico.
No dia 02/02/2008, o colunista esportivo José Geraldo Couto escreveu na Folha de S.Paulo sobre a enorme quantidade de jogadores de futebol que tem nome estrangeiro, especialmente de origem anglo-americana - apesar de um ou outro Jean ou Pierre ou Juan. A certa altura, disse que podia parecer que estava engrossando o coro dos que, como o deputado Aldo Rebelo, querem defender a "pureza" da língua pátria. Mas que não era nada disso.
Alguns dias depois, o jornal publicou carta do deputado, que se queixava de ter entrado na coluna de Couto como Pilatos no Credo. É que seu projeto não diz nada sobre nomes estrangeiros, até porque, acrescenta, já são proibidos pelo Formulário Ortográfico (!).
José Geraldo dava especial destaque ao que chamou de processo de canibalização ao qual os nomes estrangeiros têm sido submetidos. Alain vira Allan, David vira Deivid, Michael vira Maicon, Holliwood vira Oliúde. Sem contar que a vida às vezes frustra o imaginário dos pais, já que, por exemplo, Ebert William Amâncio virou simplesmente Betão e Wanderson de Paula Sabino é conhecido como Somália.
Pois foi sobre isso que o deputado resolveu opinar. Escreveu que aquilo que o colunista chama de canibalização "nada mais é do que o aportuguesamento a que deveria ser submetida toda palavra estrangeira que entra em nosso idioma, com exceção dos sobrenomes. É por isso que chamamos o herói suíço de Guilherme, e não de Wilhelm Tell. Coisa nossa? Os espanhóis dizem Guillermo, os franceses, Guillaume, os italianos, Guglielmo".
A declaração tem dois problemas. Um é leve, poderia até ser esquecido, mas um pouco de precisão faz bem. Espanhóis, franceses e italianos não dizem Wilhelm das formas como o deputado acha que dizem: eles escrevem assim o nome equivalente na sua língua. As pronúncias são um pouco diferentes, e até variáveis. Guillermo, por exemplo, pode ser pronunciado pelo menos "guijermo" (pelos portenhos) e "guilhermo" (na pronúncia castelhana "padrão").
Mas o diabo é que Rebelo mencionou Maicon como exemplo.
Não dá, deputado. Pelo seu critério, o "aportuguesamento" de Michael deveria ser o velho e bom Miguel: se Wilhelm equivale a Guilherme, Michael equivale a Miguel. Elementar.
Para a grafia Maicon, o termo "canibalização" é bem mais adequado (lembremos que Patrícia Mello chamou Máiquel a seu herói em O matador). Se alguém decidisse aportuguesar Wilhelm seguindo os critérios adotados para "aportuguesar" Michael por Maicon, Giovanni por Geovane, Charles por Tiarles e Jefferson por Djiefferson etc., a solução não seria Guilherme, como o deputado afirmou, mas Wilirrelme ou Wilirreume ou Wilirrelmi ou Wilerreu(l)me(i) (etc., que a criatividade de pais e tabeliães é quase infinita).
Possivelmente, algum deles preferiria que o nome incluísse um "y", quem sabe até dois, e "ll" duplos, e acabaríamos tendo Wyllyrrelme(i) . Se o sobrenome fosse incluído no pacote, a escolha seria Tel ou Teo ou Teu, quem sabe mesmo Thew - e talvez com acento. Não seria surpreendente que o nome fosse dividido em dois, e que sua recriação desse em Wylly Relme ou Villi Helme - ou em uma das outras variantes possíveis para "ii" e "ll"...
Enfim, o menino precisaria de muita sorte ou o tabelião de um bom almanaque, para que a opção fosse o óbvio Tell.
Não, não vou aproveitar o espaço para reclamar dos que escrevem meu sobrenome com "e", Possente. Apenas lhes rogo uma praga...
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Nomes próprios são um capítulo à parte, claro, mas Rally Dacar na América do Sul não é mais ou menos como Rock in Rio em Lisboa?
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Palavras estrangeiras costumam enganar jornalistas e outros -istas. Os esportivos costumam referir-se a um torcedor italiano como sendo um tifosi, sem sacar que esse "i" é marca de plural. O mesmo fazem os que cobrem fofocas e qualificam um fotógrafo de paparazzi. Ora, um fotógrafo é um paparazzo, como um torcedor é um tifoso.
No caderno de informática do Correio Popular de 11/02/2007, a manchete é "descubra se você é um heavy users" (sic!). Depois falam do Lula...

terça-feira, 24 de julho de 2012

O poder (e o mundo) paralelo - Zuenir Ventura

Além das chocantes revelações e das cenas de horror mostradas, as recentes reportagens sobre o tribunal do tráfico no Rio, de Mauro Ventura (é difícil disfarçar o orgulho paterno pelo feito jornalístico do filho), não deixam de impressionar também pela naturalidade com que a população local aceita e, em muitos casos, aprova as leis dos bandidos, comprometendo a imagem do carioca como povo cordial e solidário. O poder marginal se implantou e se expandiu de tal maneira nessas comunidades, impondo seus códigos de conduta, que pode ter criado não apenas um domínio à parte, mas todo um mundo paralelo aonde, por não ter chegado a república, impera a barbárie. No vazio deixado pela longa ausência do estado, desenvolveu-se um arremedo institucional em que os traficantes se arvoram em policiais, juízes, promotores e executores de penas que vão das formas mais cruéis de tortura até os métodos mais hediondos de execução, como o "microondas" (o "réu" é torrado, preso a pneus em chamas).
O julgamento do menino de 15 anos testemunhado pelo repórter não aconteceu escondido num canto da favela , mas na forma de um espetáculo interativo, com direito à presença de espectadores participantes. Como informa a reportagem, é uma oportunidade que alguns moradores tratam de aproveitar. "A cena lhes é familiar - não é a primeira vez que vêem o destino de um bandido ser decidido à sua frente, em meio a uma área pública do morro". A diferença é que agora o réu não é o costumeiro X-9 ou um eventual estuprador. Mas um reles "rato de favela", um ladrãozinho reincidente que rouba na vizinhança, o que é proibido pelos traficantes. Roubar, só fora dali. Nas platéias desses justiçamentos, há os que às vezes se compadecem e recorrem aos pastores evangélicos, chamando-os para interromper o suplício e evitar a morte. Mas há também os que assistem insensíveis e até os que compartilham do ritual monstruoso, dando sua contribuição ou simplesmente torcendo: "tem que matar!", "merece morrer!".
Lendo o relato e percebendo os riscos que correu o autor da matéria, não pude deixar de me lembrar do martírio a que um desses tribunais submeteu até a morte nosso querido colega Tim Lopes - e ainda bem que minha mulher e eu só soubemos da matéria depois de impressa no jornal. Senão diria o que disse em e-mail o major André Batista, que foi do Bope e que inspirou um dos personagens do filme "Tropa de Elite", o capitão que estuda na PUC. "Você pirou completamente, cara", escreveu ele, advertindo Mauro com indiscutível conhecimento de causa. "Você poderia ter morrido". Também repetiria o apelo que o excaveira fez: "rogo para que você continue a produzir excelentes reportagens como sempre fez, mas pelo amor de Deus não vire estatística, aponte-as".

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Ensaio sobre a cegueira - JOÃO PEREIRA COUTINHO

EM SETEMBRO passado, o presidente do Irã visitou Nova York. Bizarro, sobretudo para quem deveria estar preso por suas exortações genocidas? Nem por isso. O momento bizarro da visita aconteceu na Universidade Columbia, uma vetusta casa por onde já passaram Lionel Trilling ou Jacques Barzun. Bons tempos, esses, em que a universidade não era uma pocilga.
Em 2007, e perante a platéia erudita do momento, Mahmoud Ahmadinejad, internacionalmente conhecido por sua sanidade mental, declarou que no Irã não havia "homossexuais". Toda a gente riu.
Toda, exceto o próprio Ahmadinejad. E com inteira razão. Não pretendo ser internado no manicômio na companhia dele. Mas sou obrigado a concordar com o presidente. Como é possível acreditar que o Irã tem "homossexuais" dentro das suas portas quando o regime tem sido exemplar a persegui-los, a torturá-los e a executá-los?
Os números não mentem: em 1979, uma data que será lembrada na história da humanidade como hoje recordamos a Revolução Russa de 1917 ou a chegada de Hitler ao poder em 1933, o aiatolá Khomeini iniciava a sua "revolução islâmica". E, em três décadas, o regime executava 4.000 "homossexuais", aplicando a rigorosa (mas altamente discriminatória) lei penal iraniana sobre a matéria.
Digo rigorosa mas discriminatória porque a lei penal concede às donzelas uma benevolência que está interdita aos machos: a sodomia é punida com a morte; mas o mesmo não acontece com a homossexualidade feminina. As senhoras recebem "apenas" cem açoites nas três primeiras infrações lésbicas.
Só à quarta vez conhecem o fatal destino dos homens. Quem disse que não existem vantagens em pertencer ao "sexo fraco"?
Aliás, as vantagens não se ficam pelo chicote. E não será exagero afirmar que, no Irã, só morre por homossexualismo quem quer.
Li em tempos, num artigo da jornalista portuguesa Alexandra Prado Coelho, que o regime iraniano pode condenar os homossexuais à morte. Mas o regime não se opõe a operações cirúrgicas para mudança de sexo. Pelo contrário: o financiamento estatal é bastante generoso para esse fim.
De acordo com os números oficiais, existem entre 15 a 20 mil transexuais no Irã. Mas os números "clandestinos" multiplicam a cifra por dez, o que transforma o Irã no segundo país do mundo, logo a seguir à Tailândia, com o maior número de homossexuais que optaram pelo bisturi para jogarem por outro time. O presidente Ahmadinejad sabia do que falava. Homossexuais? É tão difícil encontrar um no Irã como encontrar o saci a pular no mato brasileiro.
Mas alguns ainda pulam. Para sermos mais exatos, alguns pulam fora e procuram salvação no corrupto mundo ocidental.
Pior: de acordo com as notícias dos últimos dias, existem casos em que "homossexuais" islâmicos abandonam a riqueza e a tolerância das suas culturas locais, entregando-se de alma e coração a potências opressores e imperialistas. Como a Grã-Bretanha. Como Israel.
Na Grã-Bretanha, o governo de Gordon Brown, depois de uma ridícula hesitação diplomática, decidiu conceder asilo político a um homossexual iraniano de 19 anos.
Parece que o rapaz, de seu nome Mehdi Kazemi, depois de assistir à execução do namorado em Teerã, achou por bem não ficar mais tempo no país. Inexplicavelmente, há gente que não gosta de balas. Ou de bisturis.
Mas o caso da semana veio de Israel, essa entidade maligna que continua a envenenar o Oriente Médio: em decisão rara, Tel Aviv concedeu visto de permanência para palestino homossexual que vivia na Cisjordânia e se preparava para ser morto pelos vizinhos. Segundo parece, os palestinos não se limitam a jogar pedras contra os judeus; também praticam esse desporto contra os seus próprios homossexuais.
Exatamente como o leitor médio da imprensa ocidental média pratica o seu desporto favorito: abominar as democracias liberais onde vive pelo aplauso irracional a culturas retrógradas e até sinistras. As mesmas culturas que o condenariam facilmente à morte caso o leitor tivesse uma orientação sexual, ou religiosa, ou política, que os fanáticos considerassem intolerável.
A cegueira física é um infortúnio, sem dúvida. Mas a cegueira mental, sobretudo quando voluntária, não deixa de ser um infortúnio maior. Ela começa no dia em que a distinção entre civilização e barbárie deixa de fazer sentido.

domingo, 8 de julho de 2012

"Não sejas demasiado justo" - RUBEM ALVES

ERA UM DEBATE sobre o aborto na TV. A questão não era "ser a favor"ou "contra o aborto". O que se buscava eram diretrizes éticas para se pensar sobre o assunto.
Será que existe um princípio ético absoluto que proíba todos os tipos de aborto? Ou será que o aborto não pode ser pensado "em geral", tendo de ser pensado "caso a caso"? Por exemplo: um feto sem cérebro. É certo que ele morrerá ao nascer. Esse não seria um caso para se permitir o aborto, para poupar a mulher do sofrimento de gerar uma coisa morta por nove meses?
Um dos debatedores era um teólogo católico. Como se sabe, a ética católica é a ética dos absolutos. Ela não discrimina abortos. Todos os abortos são iguais. Todos os abortos são assassinatos.
Terminando o debate, o teólogo concluiu com esta afirmação: "Nós ficamos com a vida!"
O mais contundente nessa afirmação está não naquilo que ela diz claramente, mas naquilo que ela diz sem dizer: "Nós ficamos com a vida. Os outros, que não concordam conosco, ficam com a morte..."
Mas eu não concordo com a posição teológica da igreja -sou favorável, por razões de amor, ao aborto de um feto sem cérebro- e sustento que o princípio ético supremo é a reverência pela vida.
Lembrei-me do filme a "Escolha de Sofia". Sofia, mãe com seus dois filhos, numa estação ferroviária da Alemanha nazista. Um trem aguardava aqueles que nele seriam embarcados para a morte nas câmaras de gás. O guarda que fazia a separação olha para Sofia e lhe diz: "Apenas um filho irá com você. O outro embarcará nesse trem..." E apontou para o trem da morte.
Já me imaginei vivendo essa situação: meus dois filhos -como os amo-, eu os seguro pela mão, seus olhos nos meus. A alternativa à minha frente é: ou morre um ou morrem os dois. Tenho de tomar a decisão. Se eu me recusasse a decidir pela morte de um, alegando que eu fico com a vida, os dois seriam embarcados no trem da morte... Qual deles escolherei para morrer? Acho que a ética do teólogo católico não ajudaria Sofia.
Você é médico, diretor de uma UTI que, naquele momento, está lotada, todos os leitos tomados, todos os recursos esgotados. Chega um acidentado grave que deve ser socorrido imediatamente para não morrer. Para aceitá-lo, um paciente deverá ser desligado das máquinas que o mantém vivo. Qual seria a sua decisão? Qual princípio ético o ajudaria na sua decisão? Qualquer que fosse a sua decisão, por causa dela uma pessoa morreria.
Lembro-me do incêndio do edifício Joelma. Na janela de um andar alto, via-se uma pessoa presa entre as chamas que se aproximavam e o vazio à sua frente. Em poucos minutos as chamas a transformariam numa fogueira. Para ela, o que significa dizer "eu fico com a vida"? Ela ficou com a vida: lançou-se para a morte.
Ah! Como seria simples se as situações da vida pudessem ser assim colocadas com tanta simplicidade: de um lado a vida e do outro a morte. Se assim fosse, seria fácil optar pela vida. Mas essa encruzilhada simples entre o certo e o errado só acontece nos textos de lógica. O escritor sagrado tinha consciência das armadilhas da justiça em excesso e escreveu: "Não sejas demasiado justo porque te destruirás a ti mesmo..."

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Vênus virtual - CARLOS HEITOR CONY

Cheguei ao hotel em Florença. Constrangido, o dono me avisou que houvera problema com a linha telefônica. Se eu precisasse acessar a internet ele me arranjaria outro hotel.
No mesmo instante, chegou a moça para fazer o seu check-in. Avisada de que não teria linha para a internet, perguntou como e onde poderia quebrar o galho, navegar era preciso.
O dono indicou, 20 metros adiante, uma loja que dispunha de vários computadores, preço razoável. A moça gostou. Mandou subir a mochila para o quarto, nem subiu para ver como era, foi diretamente buscar as ondas digitais onde lançaria suas naves no oceano virtual.
Bem, subi ao meu quarto, tomei banho, desci para dar uma volta. Lá estava a moça agarrada ao teclado, a luz trêmula e azulada do monitor batendo em seu rosto.
Fui ver o "Putto in Giardino", de Verrochio, no pátio principal do Palazzo Vecchio. Almocei costeleta à moda florentina, tomei lentamente um chianti encorpado, com aquela cor viril dos vinhos da Toscana. Voltei ao hotel. A moça continuava navegando.
Ao cair a noite, saí para jantar, a moça continuava diante do mesmo monitor.
Jantei, voltei quase meia-noite, a tal loja estava deserta, somente uma pessoa navegava no mundo virtual: ela. Não almoçara, não jantara, não tomara banho, não mudara de roupa, não vira o anjinho de Verrochio nem a fachada de mármore de Santa Maria dei Fiori.
No dia seguinte, encontrei-a fechando a conta do hotel, indo para Bolonha. Perguntei se gostara de Florença. Sim, disse ela. "Adorei tudo. Amei os Botticelli no Uffizi".
A moça precisaria de duas horas só para enfrentar a fila e entrar no museu. Gostara sobretudo de "O Nascimento de Vênus".

quarta-feira, 4 de julho de 2012

De segunda mão - CAETANO VELOSO

Sou um internauta de segunda mão. Só vejo e leio coisas que me chegam copiadas em e-mails — ou que surgem do clique que dou nos links azuis que os salpicam. Adorei ver Agnaldo Timóteo destruindo a expectativa do veado que o supôs “assumido”. Era tudo o que aparecia no YouTube a partir de um link que recebi. O grande cantor sentado ao lado do Bolsonaro e as caras que fazia a Luciana Gimenez. Acho mesmo chato essas assunções forçadas. Mas fiquei me perguntando se Agnaldo tinha sido sempre assim tão fechado quanto ao assunto.

Fernando Salem (com quem eu vinha conversando por e-mail sobre o livro que ensina a quem ainda não sabe ler que há variantes equivalentes, umas mais, outras menos adequadas para certas ocasiões, e que a “classe dominante utiliza a norma culta”, sendo, portanto, “comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular” — o que alguns supõem ser um papo mais próximo da realidade dos iletrados, embora nem eu mesmo, tão letrado que me convidaram para escrever coluna em jornal, esteja seguro a respeito da construção “que se atribua um preconceito social em relação a”)... Salem, eu dizia, me contou que Timóteo não apenas negou ser assumido como disse que carícia entre dois homens não é natural e, portanto, não se pode expor crianças a tais cenas. Me lembrei de uma canção que eu amava ouvi-lo cantar, chamada “Galeria do amor”, sobre a Galeria Alaska, reduto gay de Copacabana.

Sou de segunda mão mas não estou morto: um link leva a outro, e muitas vezes vejo coisas divinas no YouTube só porque fui olhar uma curiosidade que um desconhecido me enviou. Foi assim que achei o Timóteo cantando “Galeria do amor” na TV. A canção é dos anos 1980.

Nessa época éramos todos entendidos. Ainda. Não em sociolinguística mas no que de fato interessa. Agnaldo, com uma voz espetacular e uma afinação irrepreensível, cantava a balada con gusto, frisando aspectos homo (não necessariamente eróticos) da letra, como “gente à procura de gente”. Ao cantar “onde gente que é gente se entende”, ele olha para a câmera (para o espectador cúmplice) e sublinha com o olhar mais eloquente que se possa imaginar a palavra “entende”.

“Onde pode-se amar livremente.” Vale a pena assistir.

Não desfaz a correção política de sua fala antiassunção no programa da Gimenez,mas é um bom contraponto. Pensando no nome da saudosa Galeria Alaska (hoje é das igrejas Universal do Reino e Internacional da Graça — de Deus?), me lembrei de Sarah Palin e de como são chatos esses arroubos de atitude conservadora estridente.

Pensei que Agnaldo Timóteo é a Sarah Palin brasileira. Saiu daquele território que já virou estado da federação e veio dar pinta na ribalta do poder. Mas pensando bem, quem é Sarah Palin para se

comparar ao maravilhoso Timóteo, um talento genuíno para o canto, um homem que aprendeu a cantar com Ângela Maria, um mulato brasileiro que está nas cercanias do sagrado? E o que é o Alasca comparado à Galeria Alaska? Quando Dom Sebastião ressurgir dos mares compreender- se-á o sentido dessas minhas palavras.
■ ■ ■ ■ ■ ■
Apenas ponho a cabeça para fora. Saí da Ilha dos Sapos, onde passei uma semana sozinho com Gal e Moreno tentando gravar as faixas do disco que estamos produzindo para ela. Ilha dos Sapos é o nome do estúdio de Carlinhos Brown em Salvador. Gal e Moreno moram lá na Bahia. Fui para lá. Gal chegava sozinha dirigindo o carro. Moreno também. Eu cheguei com um motorista, pois não sei se saberia estacionar no Candeal. Gal consegue com um carro grande. O de Moreno é pequeno- normal. No primeiro dia eu contava ainda com Giovana e Miguel, meus acompanhantes em viagem de trabalho. É que eu tinha um show “fechado” (não tão fechado quanto o Timóteo) para fazer no Castro Alves. Era um show sobre o qual eu não tinha grandes expectativas, mas terminou sendo de grande estímulo artístico para mim. A neta do dono da empresa veio falar comigo antes do espetáculo. Ela disse coisas tão sinceras e era tão atenta, contou também histórias tão edificantes sobre o avô (um pioneiro em responsabilidade social entre empresários brasileiros), a acústica do Castro Alves é tão boa, Vavá estava tão inspirado (e também André, o iluminador paulistaníssimo, e Flávio, o bofe do retorno), que eu peguei meu violão e cantei tudo bem claro e firme. Nem dava pra crer que era o mesmo cara que cantou em Guadalajara faz uns meses. Por esse show no TCA é que eu tinha acompanhantes no primeiro dia de estúdio. Já no dia seguinte estávamos só Gal, Moreno e eu.

Nem sequer um assistente para puxar uns cabos e enfiar uns plugs. Só eu, meu filho e a madrinha dele. Chovia como só mesmo na Bahia: parecendo que nunca não tinha chovido. Tipo “Blade Runner”. Estou, portanto, só pondo a cabeça de fora. E não sei bem como reagir à fala de Obama em Londres sobre a eternização da liderança do Atlântico Norte (é intrigante ouvir um preto reafirmar a supremacia do Ocidente de Huntington: sinto certa alegria e certo desconforto); às fotos de Lula em Brasília, eufórico, mandando na presidente; à “Veja” (no avião) pegar leve com Palocci.

O jeito é pegar os peixe e assistir a Bolsonaro, Gimenez e Sarah Palin. Ler que os livro ilustrado mais interessante estão emprestado (e perguntar: “estão”????? para que esse estranho plural?) e que Frei

Beto quer a cartilha que, segundo Garotinho, ensina até como se faz sexo anal. Será que nesse tópico os católico tá mais cool do que os evangélico?

terça-feira, 3 de julho de 2012

Fernando Sabino - A última crônica

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.
A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.